17 setembro 2007

A ultrapassagem

No texto O nono Venerável Mestre, referi que Luís P. exerceu a função com alguns laivos de autoritarismo. Convém esclarecer que tal sucedeu não porque Luís P. fosse especialmente autoritário, mas porque a sua concepção da maçonaria e da Loja era de que esta era dirigida pelas três Luzes (O Venerável Mestre e os dois Vigilantes), sob o comando do Venerável Mestre.

Luís P. exerceu as funções de 1.º Vigilante no Veneralato do oitavo Venerável Mestre, Jean-Pierre G. O 2.º Vigilante da Loja, nesse Veneralato, foi João D. P.. Com a eleição de Luís P. para Venerável Mestre, a prática usualmente seguida na Loja implicava que o novo Venerável indicasse para exercer o ofício de 1.º Vigilante o Mestre que exercera as funções de 2.º Vigilante no ano anterior. Essa prática só muito raramente foi quebrada e, por regra, por indisponibilidade do Mestre que devia passar de 2.º a 1.º Vigilante. Foi, aliás, o caso de Luís P. que, mostrando-se especialmente interessado na formação dos Aprendizes, exerceu, a seu pedido, as funções de 2.º Vigilante dois anos seguidos, com isso, por opção própria, atrasando em um ano, quer o exercício do ofício de 1.º Vigilante, quer, depois, o de Venerável Mestre.

À época, existia a tendência - que entretanto a Loja veio a abandonar, optando por outro critério - de que o Mestre que exercia num ano o ofício de Orador viesse a ser designado 2.º Vigilante no ano seguinte. No mandato do Jean-Pierre G., quem exerceu o ofício de Orador fui eu.

Não estranhámos, assim quando, após a sua eleição, Luís P. nos convocou, a João D. P. e a mim, para uma reunião em sua casa. Deveria constituir a formalização dos convites para o exercício dos ofícios de 1.º e 2.º Vigilantes. Porém, esta particular reunião, tendo efectivamente esse objectivo revelou-se diferente do que esperávamos! Como normalmente sucedia, jantámos, conversando sobre tudo um pouco. Mas, quando passámos ao escritório do Luís P., contra o que era habitual ele não estava acompanhado do seu habitual bloco de notas, onde, por regra, tinha apontados os assuntos que pretendia tratar. Passou, sem mais delongas, ao objecto da reunião. E João D. P. e eu não podíamos ter ficado mais espantados. Luís P., directamente, sem rodeios, declarou-nos que tinha ponderado muito bem no assunto e que tinha decidido (!) que o 1.º Vigilante não seria João D. P., mas Rui Bandeira, mantendo-se João D. P. como 2.º Vigilante!

Olhei para o João D. P.. Estava tão espantado como eu! E certamente magoado, até porque Luís P. fora o seu padrinho, isto é, o maçon que assinara em primeiro lugar o seu pedido de admissão na Loja!

De imediato, declarei que isso estava fora de questão, que não aceitaria ultrapassar o João D. P. e que nem sequer via qualquer razão válida para que ele fosse excluído do exercício do ofício de 1.º Vigilante.

Luís P., não gostou! Mas, como era seu timbre, não elevou a voz, não manifestou desagrado, iniciou uma longa dissertação pela qual procurava demonstrar que João D. P. ainda não estava preparado para vir, no ano subsequente, a dirigir a Loja e que era meu dever avançar em sua substituição. Confesso que muita pouca atenção dei a essa dissertação. Olhava atentamente o João D. P. e procurava descortinar o que lhe ia na alma. Julgo ter visto sucessivamente decepção, tristeza, desapontamento e, subitamente, resolução.

Preparava-me para responder ao longo responso do Luís P. encerrando a conversa com a minha recusa de exercer um ofício que a prática da Loja apontava para que fosse exercido pelo João D. P., quando este, com um gesto, me fez sinal que pretendia ele falar primeiro.

Com toda a calma, João D. P. disse apenas três breves frases: estava desapontado pela posição de Luís P.; não queria ser factor de conflito, qualquer que ele fosse; nas circunstâncias, achava melhor que fosse eu o 1.º Vigilante seguinte e não se importava de me seguir, em vez de me preceder, no exercício dessa função!

Fiquei desarmado! Olhei para o João D. P. e li no seu olhar uma triste, mas determinada, resolução. Ao trocarmos olhares, encolheu leve e discretamente os ombros, como quem diz "não vale a pena", e acenou-me ligeiramente com a cabeça, em sinal de incentivo. Olhei para Luís P. e vi-o já recostado, com um ligeiro sorriso de quem sentira que atingira o objectivo. Eu pensava em ainda protestar, em manter a minha recusa, mas vi que era inútil: daí para a frente, teria dois a convencerem-me; recusar seria abrir uma brecha, uma fonte de conflito e de incerteza, cujas consequências me sentia incapaz de prever. Perguntei a João D. P. se era esse mesmo o seu propósito. Reafirmou que, em face das circunstâncias criadas, achava que era a melhor solução, que não tinha o menor problema em ser meu 2.º Vigilante e que acreditava que faríamos um bom trabalho juntos. Cedi. Aceitei.

A reunião terminou pouco depois. João D. P. e eu saímos juntos de casa de Luís P. Perguntei a João D. P. porque abdicara, porque aceitara ser ultrapassado por mim, pois bem vira que eu o apoiaria. Respondeu-me que era a melhor solução, que não acreditava que a Loja resistisse sem graves mazelas a um desacordo expresso entre o Venerável eleito e os seus dois naturais Vigilantes, que, a não ser assim, não saberíamos que consequências poderia ter uma fonte de perturbação inesperada, que podia abrir um processo que podia ser atribulado e conflituoso, pois não acreditava que Luís P. desistisse do seu propósito de evitar que ele fosse Venerável Mestre no ano seguinteao seu mandato.

Até hoje, só posso explicar a decisão de Luís P. de afastar da sua sucessão aquele que precisamente todos consideravam o seu delfim, o obreiro com quem tinha mais afinidades, por uma questão pessoal porventura havida com João D. P. ou com a mulher deste.

Esta decisão de Luís P., que João D. P. e eu acabámos por acatar, revelou-se, porém, um catalisador de mudança relativamente à forma de gerir a Loja. No texto sobre o Décimo Venerável Mestre direi porquê.

Rui Bandeira

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