11 outubro 2010

Vida em sociedade: confiança vs. ordem?


A população mundial há apenas 200 anos era 8 vezes menor do que é hoje. Recuemos alguns milénios e veremos a população mundial reduzir-se a poucas dezenas de milhões, número que hoje associamos a uma grande cidade. Primeiro nas tribos nómadas, depois nas aldeias após o advento da agricultura, agremiavam-se poucas dezenas de pessoas que se conheciam e conviviam do berço ao túmulo. Não havia como se esconder numa pequena povoação; mais valia não se ter nada a ocultar. Sabia-se precisamente quem eram "os nossos" e quem eram "os outros", os "da casa" e os "de fora". Se algo a isso obrigava, tinha que se fugir para outra povoação mais longínqua; não havia como permanecer e passar despercebido. Esse facto condicionava fortemente o comportamento das pessoas, que agiam em função da reação da comunidade, que por seu lado estava vigilante e atenta (sempre houve coscuvilheiras...) e caía implacavelmente em cima do prevaricador.

Como a Terra não estica, o progressivo aumento de população traduziu-se, inevitavelmente, num aumento de densidade populacional - mais pessoas por quilómetro quadrado - o que acarretou um maior número de contactos com um maior número de desconhecidos anónimos, de que decorre um maior número de conflitos. Ao mesmo tempo, ia-se criando um nevoeiro difuso decorrente do aumento de número, que impedia que se conhecesse, já, a totalidade dos "nossos", e não se conseguisse distingui-los dos "outros". A confiança que se tinha começa a declinar - as portas passam a ter fechaduras, e estas passam a ficar trancadas. Surgem crimes cuja autoria se desconhece.

Hoje em dia, a elevadíssima densidade populacional, especialmente nas zonas urbanas, levou a que a convivência nas sociedades modernas seja fortemente regulada, a um ponto que seria impensável há pouco tempo atrás. Não precisamos de recuar muito - basta fazê-lo uma década, para quando se podia viajar tranquilamente de avião para todo o lado sem o verdadeiro strip-tease abelhudo a que hoje nos sujeitam - para vermos em que curto espaço de tempo foram criadas tantas defesas, tantas barreiras, tantos controlos. A partir de certo ponto, os controlos deixam de ser instrumentais, e passam a constituir um fim em si mesmos, propulsionados por toda uma indústria que deles se alimenta. Cada vez há menos confiança da polícia no cidadão - que, afinal, pode ser um bandido - e deste na polícia - que, afinal, tem a faca e queijo na mão para cometer os abusos que entenda. O poder político, esse, desconfiado de ambos e numa posição altaneira, produz leis a um ritmo acelerado - muitas das quais nem os cidadãos cumprem, nem a polícia consegue fazer cumprir.

E neste momento interrompo este texto para vos convidar a ver este video. Tomar-vos-á apenas 5 minutos. Para quem o não queira ou não possa ver, descreve como, na baixa de uma cidade de Inglaterra, foram eliminados por completo os semáforos e a maioria dos sinais de trânsito, regulando-se este apenas pelas regras mais básicas de prioridade. O resultado? O trânsito parece mais caótico - com todos a andar ao mesmo tempo - mas desapareceram as longas filas nos semáforos e grandes tempos de espera. O tráfego automóvel adquiriu uma fluidez nunca vista, e isto sem se diminuir o número de viaturas e até diminuindo o número de acidentes! Uma das habitantes relata, estupefacta, que o percurso que antes lhe levava mais de 20 minutos é agora feito em 5. E a cidade parece outra, sem filas de carros em ponto morto e a deitar fumo. As pessoas são mais cordiais ao volante, e muitas dão passagem com um sorriso. Só os cegos se queixam de que as mentalidades demoram a mudar, e têm medo de atravessar a rua sem o conforto dos semáforos e sinais sonoros nas passadeiras para garantir que os carros param mesmo. Este problema está presentemente em estudo, e quer-se resolvido.

Eis como, deixando as coisas nas mãos do cidadão comum que age num espaço público perante a vigilância atenta dos demais peões e condutores, se consegue obter um modelo muito mais justo e perfeito de circulação. Eis como se muda uma cidade sem revoluções, sem derrubar leis, e sem atentar contra a vontade de uma população - fazendo-o estritamente a partir do edifício  legal existente. Se a maçonaria regular fosse uma autoridade de trânsito, arrisco dizer que seria assim que deliberaria.

Paulo M.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante esse texto e essa reflexao. Das tribos primitivas para ca muita coisa mudou, mas o ser humano, como homo sapiens, estrutura biologica e psicologica, continua praticamente o mesmo.
Estive lendo uma vez sobre uma tribo primitiva de canibais. Se eles proprios entendessem esse conceito nao se diriam canibais, por que no entender daquela tribo, qualquer um que fosse de fora, era um animal como outro qualquer, como um bufalo ou um elefante, nao reconhecido como um igual e portanto, uma caça. Por que digo isso agora? Por que isso tb parece pouco ter mudado, estamos em um sistema tao individualista que dificilmente alguem nao transgride a lei em nome da propria pressa ou de uma justificativa qualquer que lhe dê respaldo, mesmo que prejudique o outro. Esse exemplo do transito na Inglaterra me surpreende bastante. Aqui no Brasil, penso que nao daria certo. De toda forma é um sonho bom pensar que um dia o ser humano volte a se perceber como parte de uma comunidade, por maior que ela seja. E seja cooperativo com o proximo cedendo a vez no transito e em muitos outros sentidos. Acredito que a Maçonaria busca esse sentido de comunidade e o encontra no seio de sua organizaçao. Admiravel.
Um abraço,
Cam
ps: postei um texto da escritora Sonia Sales sobre a importancia da Maçonaria na aboliçao da escravatura no Brasil. Se puderem, leiam, por favor. Ficarei contente.

Candido disse...

Caro Paulo.
Começava a estar preocupado consigo! Valeu a pena esperar, pois na situação em que estamos, este tema deixa-nos pensar se o modelo não estará falido!
Pior, sociedade pressupõe solidariedade, quando esta desaparece, é o quê, matilha?
Camille, gosteipelo comentário e pelo artigo. Foi graças a grandes homens "lusos" que o Brasil não foi espartilhado como aconteceu com os outros. Sinto orgulho de ver um país uno como o Brasil!
Abraços

Anónimo disse...

O último parágrafo é uma imagem muito interessante que acaba por fazer uma súmula da actuação regular, contudo, espero que seja meramente simbólica e não estritamente verdadeira(e eu posso até estar a laborar em erro) mas o argumento indutivo envolve uma generalização baseada num certo número de observações físicas; e o argumento dedutivo, por outro lado, parte de certas premissas, passando depois, longinquamente, para uma conclusão que se segue dessas premissas;
Os argumentos dedutivos preservam a verdade. Isto significa que, se as premissas são verdadeiras, as suas conclusões têm de ser verdadeiras.
Ora, os argumentos indutivos com premissas verdadeiras podem ter ou não conclusões verdadeiras. Assim pensando de repente, para serem necessariamente sempre verdadeiras seria necessário que o campo de observação que permite a generalização fosse o universo.
JJ Rousseau que me perdoe, mas se calhar o selvagem não era (nem é) assim tão bom. Na imagem utilizada, existe uma coacção implícita (ainda que relativa e sub-reptícia) por parte de toda a rede automobilistica sobre cada um dos condutores, que os faz aderir às regras de trânsito. Ou seja, LPD, o sistema flui por acção de duas forças contrárias (liberdade e despotismo) que se equilibram.
Penso eu, que não percebo nada disto, diga-se em abono da Verdade.

Paulo M. disse...

@Daniel Conceição:
O último parágrafo não pretende traduzir uma generalização, uma verdade universal, mas tão-somente fazer referência ao caso concreto de que falei. Poderia, em vez de "eis como se muda uma cidade" ter dito "eis como se mudou uma cidade", ou "eis um exemplo de como se pode mudar uma cidade". O recurso ao verbo no presente não passou de mero artifício linguístico.

Mas gostei do seu comentário! Comente mais vezes!

Um abraço,
Paulo N.