27 março 2013

Meio-dia


Repararam certamente que os meus textos aqui no A Partir Pedra são, desde há muito, sempre publicados precisamente ao meio-dia (hora legal de Portugal Continental). Faço-o propositadamente, porque o meio-dia é a hora em que os maçons iniciam os seus trabalhos.

Não quer isto dizer que os maçons sejam uma cambada de mandriões que passam as manhãs em vale de lençóis ou em dolce far niente... A expressão tem um significado simbólico - que nem sequer é muito difícil de descortinar.

Mas, antes de prosseguir, uma advertência: em Maçonaria não há dogmas, não há "verdades" impostas a quem quer que seja - designadamente em termos de significados simbólicos. Cada um estuda, analisa, reflete, sobre um símbolo e extrai dele o significado que lhe parecer adequado - e que pode ou não coincidir com a interpretação alheia. Não há significados "certos" de símbolos. Há significados que são certos para aquela pessoa, podendo outra pessoa considerar certo para si diferente significado do mesmo símbolo. E isto é, mais do que normal, vulgar e essencial em Maçonaria, que preza em absoluto a liberdade individual e que tem como componente inderrogável a Tolerância pelo entendimento alheio. Se dois maçons tiverem diferente perceção sobre algo (por exemplo, um significado simbólico), calmamente expõem os respetivos pontos de vista, analisam-nos em conjunto, e cada um extrairá as sua conclusões, podendo um ser convencido pelo outro, podendo ambos mudar de opinião e confluírem numa conclusão diferente das respetivas posições iniciais, podendo um ou ambos mudar de opinião, mas permanecerem em desacordo, agora em diferentes bases, ou simplesmente ambos manterem os seus respetivos entendimentos, concordando em discordar - sem que, em qualquer das situações, venha daí mal ao mundo... A liberdade de opinião é sagrada, mas só o pode ser desde que se respeite a liberdade de opinião alheia (que é tão sagrada como a nossa...) e naturalmente se conviva com a inevitabilidade das divergências, sem que elas impeçam o trilhar comum dos caminhos em que se está de acordo.

Por vezes há símbolos cujo significado adquire uma natureza quase consensual. Mesmo nesses casos, não se pode, em bom rigor, afirmar que o significado, ainda que consensual, do símbolo é "o" correto. Se alguém lhe atribuir outro significado, se alguém concluir que esse outro significado é o que, para si, é o certo, para esse assim será - e os demais naturalmente respeitam isso. Portanto, sempre que eu afirmo que um determinado símbolo tem um certo significado, o leitor deve entender que esse é o significado que eu lhe atribuo, que pode até ser consensualmente aceite pela generalidade dos maçons - mas não é necessariamente certo para todos, aceite por todos. Sempre que eu refiro um significado de um símbolo, o leitor deve fazer o seu juízo e concordar com ele ou dele discordar. Apenas sabe que eu atribuo esse significado, que raciocino em função dele e deve ter tal em consideração ao interpretar o que escrevo. Mas deve manter a sua liberdade de pensamento e o seu juízo crítico e concordará ou discordará - e assim é que deve ser!

Regressando então, após esta - longa! - advertência ao assunto, dizia eu que se atribui (eu atribuo; muitos dos maçons atribuem, como eu...) ao meio-dia um significado simbólico que leva a ser comummente usada entre os maçons a frase de que estes iniciam os seus trabalhos a esta hora. 

Tal como o dia é regido pelo percurso do Sol desde o momento em que nasce até àquele em que se põe e atinge o seu clímax, o seu máximo expoente, ao meio-dia, os maçons utilizam o termo para significar a idade adulta. Durante a madrugada e manhã das suas vidas - a infância e a adolescência - crescem, aprendem, amadurecem. Nessa altura ainda não têm a maturidade necessária para consistentemente passar do material ao espiritual, ainda não estão prontos para iniciar os seus trabalhos de maçons - que consistem no dominar das suas paixões, no alisar de seus defeitos, no aprofundar de seus conhecimentos, no lustrar de suas qualidades, enfim, em tudo o que necessário é para que se evolua, se melhore, se aperfeiçoe. 

Só com a idade adulta e a estabilidade a ela inerente atingidas, ultrapassadas que estejam as dúvidas sobre si próprio, as suas capacidades e o seu lugar no mundo, o homem está verdadeiramente disponível para melhorar, se aperfeiçoar, através de um método próprio, que implica vir do mundo para dentro de si e dar de si ao mundo o melhor que continuamente faz, edifica, altera. 

O meio-dia a que se referem os maçons é, pois, a sua maturidade, o momento em que estão maduros e, continuando a lidar com o mundo, a vida, a sociedade, as suas obrigações pessoais, familiares, profissionais, sociais, podem e conseguem já não se limitar a isso - como muitos vão fazendo ao longo da sua vida, e chegam perto do seu fim perguntando-se se a vida é só isso... -, mas fazer um pouco mais, e diferente, construir-se a si próprio, conhecer-se, retificar-se, evoluir, buscar o que sabem ser inatingível, mas que só vale a pena viver se se viver buscando-o: a perfeição.

É nesse preciso momento em que ultrapassou o imenso período de crise, porque de contínua mudança, que é a infância e a adolescência, que resolveu os seus problemas de sobrevivência, que sabe qual é o seu lugar no mundo e na sociedade, e o ocupa, que, enfim, está estabilizado, que o homem está pronto para trabalhar no seu interior, esculpir a sua personalidade, melhorar os seus conhecimentos e a sua forma de ser, estar e de agir, ir para além da vulgar materialidade embrenhando-se no território quantas vezes quase desconhecido da sua espiritualidade.

Esse é o momento em que está pronto para iniciar os seus trabalhos sobre si próprio. Uns atingem-no cedo, outros mais tarde. Cada um, e as suas circunstâncias de vida, atinge esse preciso ponto de equilíbrio, em que ou estagna na sua vidinha, ou se abalança à aventura de se metamorfosear, mantendo o mesmo aspeto exterior, na altura em que atinge. Esse é o momento em que se fica ou se vai. Esse é o momento em que o homem não faz sombra a nada, nem a ninguém - nem a si próprio -, mas em que adquire a consciência do valor da sua individualidade e do potencial que ela pode desenvolver.

Esse é o meio-dia, a hora em que os maçons iniciam os seus trabalhos! 

Rui Bandeira

20 março 2013

"Casamento maçónico"


Um ilustre Irmão perguntou-me porque é que em certas jurisdições os maçons repetem os votos de casamento em Loja em presença dos Irmãos e das famílias e ainda se tal seria um modismo ou se tinha alguma concatenação histórica.

As aspas colocadas no título deste texto denunciam que a minha opinião não é particularmente entusiasta em relação a esta prática que, tanto quanto sei, tem essencialmente lugar no Brasil. Mas, apesar disso, manda a justiça frisar que no grande país lusófono da América do Sul, tal prática não deve ser considerada um modismo, pois encontra-se enraizada  nos costumes locais, sendo reconhecida por várias Obediências  Regulares brasileiras. Já a "importação" dessa prática para outras paragens, na minha opinião, sofreria desse pecado...

Antes do mais, deve refutar-se a designação de "casamento maçónico". A este respeito, transcrevo parte de um texto que consigna as conclusões de um simpósio sobre o tema"Maçonaria e Religião" que decorreu em Belo Horizonte em 10 de setembro de 2005, sob a égide do Supremo Conselho do Grau 33 para a República Federativa do Brasil, Rito Escocês Antigo e Aceito (texto completo aqui): 

Casamento: Cerimônia tradicional entre os maçons, ligada ao matrimonio, é atualmente denominada, "CONFIRMAÇÃO MATRIMONIAL". Não se trata de uma solenidade religiosa, nem cívica, conforme normalmente se considera. Não é tampouco uma solenidade substitutiva daquelas que normalmente ocorrem num templo religioso. Nesta solenidade, evocando os valores da família, sempre exaltados pela maçonaria, os cônjuges - normalmente já casados - se comprometem perante os membros da loja e demais maçons de outras lojas, a manterem firmes e constantes os vínculos que livremente resolveram celebrar. A maçonaria lembra o dever de cada um, bem como suas responsabilidades na condução da família, célula essencial da sociedade.
O cerimonial nada tem de religioso, é uma solenidade fraterna e humanitária muito usual entre maçons. É antes de tudo uma afirmação da maçonaria aos valores éticos e morais de uma sociedade formada por famílias solidamente constituídas.

O erradamente designado "casamento maçónico" deve então, com maior correção, ser designado por "confirmação matrimonial". Também encontrei a designação, que me parece igualmente adequada, de "reconhecimento conjugal" num outro texto de que, pelo seu evidente interesse, transcrevo o seguinte excerto:

Após e somente de posse do registro do Cartório o  Irmão poderia pedir a Loja que lhe fizesse seu Reconhecimento Conjugal. Há vários rituais para o ato, cada Potência/Obediência adota um. O mais importante é sempre ressaltar que NÃO SE TRATA DE CASAMENTO MAÇÔNICO. Maçonaria não é religião e nem substitui os requisitos e formalidades que as leis do país estabelecem para a validez do matrimônio. 


Em resumo, trata-se de um costume brasileiro que, tendo ali criado algumas raízes, deve ser respeitado pelo significado que os maçons ali lhe atribuem, embora reconheçam (como no texto sobre "reconhecimento conjugal" também se assinala, e dele novamente cito) que alguns procedimentos adotados pelas Potências/Obediências Maçônicas não estão diretamente ligados aos Ritos Maçônicos. Muitas atividades foram criadas para atender a demanda dos Maçons. Um exemplo é o Reconhecimento Conjugal, algumas Potências/Obediências criaram um momento próprio para a apresentação da esposa do Irmão a todos os demais Irmãos e cunhadas.

Reconhecendo a intenção dos Irmãos brasileiros, não me parece que deva ser um costume que seja asado importar para a Europa. A Maçonaria busca possibilitar e enquadrar o esforço de aperfeiçoamento individual dos seus membros. A cerimónia de "reconhecimento conjugal" ou "confirmação matrimonial" não tem nenhum significado esotérico ou simbolismo maçónico, reconduzindo-se, afinal, a uma festividade social levada a espaço no espaço de um templo maçónico. A meu ver, deve-se reservar o espaço e o tempo e o modo de reunião dos maçons para o que simbólica e espiritualmente tem significado para estes e contribui para o aperfeiçoamento de cada um e de todos. As festividades sociais, o regozijo pelo enlace matrimonial, o acolhimento das esposas dos nossos Irmãos no círculo de amizades e social dos maçons pode e deve ser naturalmente feito fora e para além do espaço da Loja. Por muito bonita que seja a cerimónia, por muito belo que seja o texto ritual que para ela foi criado, continua a não ser mais do que uma festividade social...

Fontes:

Conclusões do Simpósio sobre "MAÇONARIA E RELIGIÃO", ocorrido em belo Horizonte em 10 de setembro de 2005, sob a égide do Supremo Conselho do Grau 33 para a República Federativa do Brasil, in http://www.guatimozin.org.br/artigos/mac_religi.htm .

Quirino, A. R. L. S. Presidente Roosevelt, n.º 25 da Grande Loja Maçônica de Minas Gerais, Reconhecimento Conjugal, 21 de agosto de 2011, in http://www.aminternacional.org/PDF/ReconhecimentoConjugal_Quirino.pdf

Rui Bandeira

13 março 2013

O meu testamento maçónico


No texto anterior, procurei esclarecer o que é o testamento maçónico. Neste, vou procurar ilustrar na prática esse documento. Pessoalmente, e uma vez que há muito assumi publica e orgulhosamente a minha condição de esperar que os meus Irmãos me reconheçam como maçom, não necessitaria de elaborar um documento desse género. Mas, já que me predispus a um exercício prático ilustrativo do que é este tipo de documento, eis então o que, aqui e agora, constitui o meu testamento maçónico.

AOS MEUS IRMÃOS MAÇONS E A TODOS OS QUE ME RECONHECEM COMO TAL

Saibam todos os que este escrito lerem ou ouvirem que o seu autor um dia teve a ousadia de crer merecer ser admitido na Augusta Sociedade dos Maçons, antigamente chamados de pedreiros-livres, pedreiros porque utilizam como seus símbolos artefatos dos construtores, livres de pensamento e de paixões que os dominem (embora todos reconheçam ter paixões, defeitos e asperezas que são ínsitos a todos os seres humanos - e que procuram, com diferentes graus de êxito, dominar, domesticar, encerrar nos calabouços de seus íntimos, de forma a que ninguém prejudiquem e raramente sejam entrevistos). Essa ousadia pagou-a, pelo resto da sua vida, com permanente esforço de procurar, em cada dia, ser um pouco, um tudo nada, melhor do que o anterior: aprender mais, aprender sempre, refletir mais cuidadamente, dominar suas impaciências, dosear justiça com solidariedade e rigor com generosidade, trabalhar eficazmente, honrar sua palavra, amar sua família, respeitar a todos, tolerar as imperfeições alheias na mesma medida em que espera poder ver toleradas pelos demais as suas, enfim, viver plenamente a vida como deve ser vivida, na permanente busca da melhoria que é, talvez, o verdadeiro significado e objetivo da nossa passagem por este plano de existência. 

Chegado o tempo do pousar de ferramentas, na altura da disposição do que aqui resta depois do mais importante de mim ter partido para o Desconhecido no Eterno Oriente, deixo à vontade de meus Irmãos e da minha família a realização, pública ou recatada, de cerimónia maçónica: em bom rigor, não será já questão que me afete, pois já terei então partido e o que fisicamente restar não serei já eu, mas apenas o que fica para trás. Sempre achei que as cerimónias fúnebres - de qualquer tipo - se fazem para os vivos, não para quem já partiu... Portanto, se à minha família e a meus Irmãos agradar fazer uma cerimónia maçónica, que ela seja feita. Se a uma ou outros desagradar tal coisa, que sem remorso ou pena fique por fazer, que falta não me fará, certamente, pois tenciono já ir adiante...

Se alguém perguntar qual a minha religião, respondam que fui, acima de tudo, Crente. Fui católico por cultura, mas fui mais do que católico, pois considerei-me também protestante e judeu e muçulmano e hindu e animista e tudo o resto que põe o Homem perante o Absoluto, o Criador e a Criação, a Vida, a Vida antes da Vida e depois dela. Sempre considerei que o que importa na religião é, precisamente, religar o Homem à sua origem, à sua criação, e ao seu destino, religar a minúscula partícula de quase invisível peça, que cada um de nós é, ao Grande Arquiteto Construtor e sua inapreensível Obra. Por isso, sempre acreditei que não há que dividir entre religiões, todas são a mesma expressão da mesma necessidade humana, simplesmente cada uma sendo específica variante de particular cultura, de determinado tempo, de ambiente próprio. Mas, porque todas as religiões correspondem à mesma básica necessidade humana, todas são iguais no essencial e, assim, aquilo em que diferem é necessariamente apenas acessório. O desejo que deixo expresso é que cada um viva o Essencial, praticando livremente o Acessório que lhe agradar!

Se alguém quiser falar de mim e se tal não for penoso para minha família nem agredir demasiado a paciência de quem a acompanhe, então que sobretudo não fale de mim, do que fiz ou deixei de fazer, dizer ou pensar, mas antes procure extrair a lição para o futuro do que fiz bem e do que mal efetuei: o que tenha feito no Passado, Passado é. Importa mais preparar o Futuro, vivendo plenamente o Presente.

Os objetos ligados à Arte Real que para trás deixo, se os meus herdeiros com isso concordarem e se a minha Loja nisso estiver interessada, que sejam confiados à minha Loja, que lhes dê o destino que lhe aprouver. Se uns não concordarem ou outros não estiverem interessados, que isso não cause preocupação ou desgosto a ninguém. Afinal de contas, são meros objetos, nada mais... Os meus livros de temática maçónica que fiquem para os meus herdeiros, se nisso tiverem interesse, ou então que sejam entregues à minha Loja, para que lhes dê o uso ou destino que lhe aprouver e para que tenham utilidade. 

O que escrevi, publiquei-o e, uma vez publicado, não pertence só a mim. Os pensamentos, uma vez divulgados, são de todos, para que cada um faça com eles o que bem entender. As palavras, logo que públicas, são livremente utilizáveis por cada um. Tudo o que escrevi pode ser citado, copiado, glosado, divulgado, comentado, criticado, apenas com o respeito de duas condições: a identificação do seu autor e a indicação do local onde foi primeiramente publicado. Quanto a publicações comerciais ou de que resultem proventos (se algo do que escrevi algum dia tal mérito ou potencialidade tiver), naturalmente que dependem do regime legal dos direitos de autor e dependerão da vontade de meus herdeiros e herdeiros deles, até que legalmente caduquem tais direitos.

Em suma, e parafraseando alguém que foi uma grande alma e que foi também por muitos reconhecido como tal, Raul Solnado, a mensagem que tenho a veleidade de deixar é apenas esta: FAÇAM O FAVOR DE SER FELIZES. Eu procurei sempre sê-lo e aprendi que a felicidade está nos momentos, na satisfação do dever cumprido, no orgulho das vitórias, mas também na consciência das derrotas bem lutadas, no percorrer do caminho que traçámos, com destino ao horizonte depois do horizonte. Que cada um percorra o caminho na direção de sua escolha pela forma que seja do seu agrado e, sobretudo, que consiga ser feliz, com a noção de que verdadeiramente não se é feliz, está-se feliz e é do estar que vem o ser.

Sobretudo, que cada um celebre o que é verdadeiramente importante: a Vida!

Rui Bandeira

06 março 2013

Testamento Maçónico


Enquanto cidadãos, todos podemos elaborar o nosso testamento, documento no qual, essencialmente, expressamos, desejavelmente dentro dos limites da Lei - senão, o que estipularmos será nulo -, a nossa vontade quanto ao destino dos bens que acumulámos ao longo da nossa vida. 

O maçom pode também elaborar e deixar ao cuidado de seus Irmãos um testamento maçónico. Neste caso, o essencial não é a estipulação sobre bens materiais, até porque a forma legalmente prevista para tal é precisamente o testamento civil, não o maçónico.

O cerne das disposições do testamento maçónico respeita à indicação de como deseja o testador que se comportem os seus Irmãos em relação à sua condição de maçom, designadamente no decorrer das exéquias fúnebres.

Um dos elementos que integram o segredo maçónico é a reserva de identidade do maçom que não se tenha assumido publicamente como tal. A razão de ser desta reserva prende-se exclusivamente com a necessidade de prevenir prejuízos para o maçom, em virtude da divulgação dessa sua condição, em sociedades em que a Maçonaria seja reprimida ou objeto de preconceito. Pode estar em causa a manutenção do seu emprego, a obtenção dos meios de subsistência do próprio e da sua família, quando e onde o preconceito contra a Maçonaria esteja presente. Porém, tal reserva apenas subsiste em vida do maçom em causa, pois, com o seu decesso, não há já preconceito que o possa prejudicar.

Os maçons aprenderam, porém, com experiências desagradáveis, que, embora o maçom que passou ao Oriente Eterno não possa já ser prejudicado pela revelação pública dessa sua condição, a família que deixou para trás pode ainda ser negativamente afetada com esse conhecimento público, quanto mais não seja por vil maledicência.

O testamento maçónico destina-se, assim, a possibilitar que o maçom informe os seus Irmãos do seu desejo em relação ao comportamento deles nas suas cerimónias fúnebres.

Assim, designadamente deixa estipulado se deseja ou não que os seus Irmãos, na noite do seu velório, se o mesmo tiver lugar, ou em qualquer outro momento das cerimónias fúnebres, executem a Cadeia de União em sua evocação. A Cadeia de União fúnebre é um tocante ritual de homenagem em honra do maçom partido para o Oriente Eterno e, no caso dos maçons regulares, de reafirmação da crença de todos na permanência da Vida para além do umbral da morte física. Assinala ainda a convicção de todos os nela participantes de que tudo o que o homenageado construiu em si próprio e de si próprio ao longo da sua vida maçónica, todo o seu trabalho de aperfeiçoamento, não foi em vão, não se desperdiça nem perde significado com a sua partida, antes permanecem vivos a sua inspiração e o seu exemplo na memória dos seus Irmãos, e o seu esforço simbolicamente prossegue no trabalho dos que lhe sucedem, que as ferramentas que pousou ao chegar a sua hora final são retomadas pelos mais novos e incansavelmente prosseguem o trabalho de edificação de uma Humanidade melhor, indivíduo a indivíduo. A Cadeia de União fúnebre pode ser realizada em privado, apenas com a presença de maçons, ou em público, designadamente com a presença de familiares e amigos do  homenageado. Pretendendo ser uma homenagem, uma evocação sentida, não deve ser constrangedora para ninguém, designadamente para a família do homenageado. Assim, ninguém melhor do que o maçom pode informar os seus Irmãos sobre a conveniência de realização pública - e numa ocasião de tanta emoção como são as exéquias do falecido - da Cadeia de União fúnebre.

Pode o maçom também deixar expresso se está ou não de acordo que, nas suas exéquias, um seu Irmão faça uma breve alocução relativa à sua postura na vida profana, na sua vida maçónica ou em ambas.

Pode suceder que o maçom não tenha família no local do seu falecimento e onde deverão decorrer as suas exéquias. Nesse caso, pode deixar aos seus Irmãos indicação se pretende ou não que nelas tenha lugar cerimónia religiosa - e de que religião.

Pode, no testamento maçónico, estipular-se se as flores que os seus Irmãos pretendam enviar em sua homenagem devem ou não conter elemento identificativo de que quem as envia é maçom - designadamente identificação de Loja ou de Grande Loja.

Pode ainda, no testamento maçónico, solicitar-se que um dos Irmãos, em tempo oportuno, providencie aos familiares mais próximos do testador uma explicação do que é a Maçonaria, com ou sem indicação da Loja a que pertencia o falecido, ou que essa explicação seja providenciada apenas em relação a pessoa ou pessoas determinadas.

Pode também declarar-se se pretende doar os seus paramentos maçónicos (aventais, colares, chapéus, luvas) ao Museu da Obediência e os seus livros, escritos e documentos de índole maçónica à Biblioteca da Obediência, ou parte de uns e outros, ou se quer que aqueles, estes ou ambos fiquem na posse dos seus familiares ou de quem ele entender.  Esta estipulação não tem qualquer valor legal (para o ter, teria de estar inserta num testamento civil), servindo apenas de orientação e informação para os seus Irmãos e sua família em relação ao desejo, nesta matéria, do falecido. Mas o poder de decisão pertence, obviamente, aos seus herdeiros legais, nos limites de eventual estipulação feita em testamento civil.

Pode, por outro lado, utilizar-se o testamento maçónico para informar os seus Irmãos de ajuda que seja necessário prestar a qualquer seu familiar, e relativamente a que assunto ou de que natureza. A obrigação de solidariedade dos maçons estende-se aos familiares do Irmão do falecido. Ninguém melhor do que o próprio para informar os seus irmãos de ajudas, esforços ou responsabilidades que se assegurava e que a morte física impede que se continue pessoalmente a assegurar, solicitando o auxílio dos Irmãos sobrevivos para a resolução da questão.

Finalmente, pode o maçom utilizar o seu testamento maçónico para deixar qualquer mensagem, pensamento ou indicação que tenha por asado deixar, seja para os seus Irmãos, ou algum ou algum deles, seja para que os seus Irmãos transmitam a alguém.

Em suma, o testamento maçónico é um documento análogo ao testamento civil, mas relacionado com a vida maçónica do seu autor, sem valor jurídico, mas com evidente valor moral - aquele que, em primeira linha, interessa aos maçons!

Rui Bandeira