09 outubro 2013

Reflexão



No século XVIII, quando se expandiu a Maçonaria Especulativa, esta seguia e divulgava os princípios do Iluminismo. A Maçonaria foi então um farol que apontou o caminho da evolução social, da conceção laica, livre, igual, fraterna e tolerante do mundo, da sociedade e do lugar nela do Homem. 

O pensamento escolástico é substituído pela Ciência Experimental; racionalismo e empirismo substituem o pensamento arcaico apenas fundado nas interpretações teológicas dominantes; Locke teoriza a Tolerância como valor social; emerge o reconhecimento e proteção dos direitos humanos; o absolutismo é substituído pela submissão à Lei; a soberania por direito divino é substituída pelo conceito de que a soberania pertence ao Povo e deve ser exercida em nome do Povo, para o Povo e pelos representantes designados pelo Povo; emerge e triunfa a noção de que as sociedades devem prezar e preservar a Liberdade, assegurar a Igualdade, possibilitar a vivência em Fraternidade; o princípio da separação de poderes triunfa. Em toda esta evolução os maçons deram o seu contributo.

Trezentos anos depois, o mundo e a sociedade são radicalmente diferentes em relação ao que eram no início do século XVIII. Os valores que a Maçonaria adotou implantaram-se progressivamente em toda a sociedade e - felizmente! - hoje são essencialmente valores da sociedade, não de qualquer estrutura social, Maçonaria incluída.

Trezentos anos depois, verificando-se que o essencial do ideário maçónico venceu e está institucionalizado no mundo desenvolvido, inevitavelmente que surge a interrogação: continua, nos dias de hoje, a Maçonaria a fazer sentido? Não será hoje uma instituição ultrapassada pelo sucesso do seu ideário, transitada da modernidade no passado para o arcaísmo no presente? 

Em termos sociais, só o que mantém utilidade e sentido permanece. Tudo o que não preenche já o requisito da necessidade, do interesse, inevitavelmente estiola, fenece, cai em desuso, desaparece. Ou então transforma-se, assegurando a sua existência e pujança pela assunção de valores e interesses socialmente úteis e necessários no momento presente. Qual a função da Maçonaria hoje? Apenas a defesa dos valores que o tempo e a evolução social consagrou? Apenas uma instituição "anti-reviralho"? Ou será que a matriz genética da Maçonaria lhe permite vislumbrar, aprofundar, consensualizar novos caminhos ainda por explorar ou desenvolver, valores a implementar? Se assim é, quais os caminhos a que dar atenção, como consensualizar a direção a tomar?

Os tempos de hoje são radicalmente diferentes dos de há trezentos anos, de há duzentos anos, de há cem anos, mesmo de há cinquenta anos. As sociedades complexizaram-se visivelmente. A comunicação e os meios de a efetuar evoluíram, modernizaram-se, democratizaram-se, vulgarizaram-se. Onde antes havia poucos meios apenas ao alcance de uns poucos privilegiados, hoje tudo está praticamente à disposição de todos. A informação hoje é tudo menos escassa. Pelo contrário, começamos a ter dificuldade em selecionar, em determinar de entre a abundante cascata que incessantemente jorra sobre nós o que verdadeiramente interessa e o que é dispensável, o que é fundamentado e o que é apenas boato, palpite ou mesmo patranha. A segmentação de interesses e a extrema variedade de temas para os múltiplos interesses pessoais instalou-se. A informação hoje é multipolar e mundividente, cabendo ao indivíduo - a cada indivíduo - selecionar o que lhe agrada, o que lhe interessa, o que pretende. Neste circunstancialismo, qual o papel da maçonaria? Como pode e deve comunicar? Com que meios? Seguindo que estratégias? Procurando assegurar que objetivos?

Trezentos anos depois, estamos no fim do caminho, chegámos a uma encruzilhada ou simplesmente somos nós que temos de desbravar o caminho para que a Humanidade chegue aonde ainda não imaginou sequer poder chegar? O nosso - dos maçons, da Maçonaria, mas também da Humanidade - caminho chega até ao horizonte ou vai para além dele?

Tudo isto são interrogações que hoje se abrem à reflexão dos maçons e que é bom que os maçons se coloquem, em reflexão individual ou em análise coletiva, mas sempre plural.  

Por mim, penso que há ainda muito a fazer, que os sonhos e anseios do ideário maçónico estão ainda por completar. Quanta intolerância ainda campeia! Como são ainda vulneráveis muitos dos valores que, muitas vezes ligeiramente, consideramos solidamente implantados! E continua a haver - sempre continuará, acho - espaço e meio para cada um de nós poder melhorar e contribuir para a melhoria da sociedade. 

Mas também penso que as interrogações que atrás coloquei devem ser postas e que é tempo de lhes darmos atenção, de estudarmos os seus contornos e de buscarmos as respostas mais adequadas para cada uma delas. Nesse aspeto, a Maçonaria tem em si mesma uma caraterística organizacional que constitui uma poderosa ferramenta: a sua estrutura nuclear, com plena autonomia de cada Loja e, dentro destas, com plena aceitação dos caminhos e reflexões individuais de cada um. Isto permite que todas as interrogações acima colocadas - e muitas outras - sejam tratadas de formas diferentes, por gente diferente, em tempos diferentes, com diversas perspetivas. Cada Loja escolhe ou naturalmente dedica-se a um pequeno aspeto de um problema. Cada maçom interroga-se sobre o que lhe chama a atenção. Umas e outros buscam caminhos, propõem soluções. Cada Loja por si. Cada maçom em si. Em aparente desorganização e descoordenação. Mas é precisamente essa desorganização que se revela, afinal, muito bem organizada, na medida em que permite e gera o máximo de liberdade na reflexão dos grupos e dos indivíduos. Desse cadinho, a seu tempo emerge uma ideia que se espalha. Das ideias que se espalham, algumas fortalecem-se. Das que se fortalecem, algumas atingirão o patamar do consenso. E assim as ideias e os valores que o tempo presente reclama emergem e fazem o seu caminho, em sociedades modernas cada vez mais complexas.

Daqui a outros trezentos anos, quem então viver e se interessar fará o balanço sobre o êxito dos trabalhos, pistas, soluções e caminhos que agora efetuamos, buscamos, encontramos e prosseguimos.

Rui Bandeira

5 comentários:

Leo disse...

Boa noite a todos

Na minha opinião um dos avanços que os percursores da maçonaria especulativa mais gostariam de ver adotado na maçonaria de hoje seria a admissão de ateus no seio da sua Ordem, da mesma forma que já são admitidas mulheres e pessoas com certo nível de deficiência. isto, desde que a pessoa em causa demonstre ser uma pessoa livre e de bons costumes e comungue com o ideal maçónico no sentido mais elevado do termo.
Tenho conhecimento de alguns maçons ateus que se sentem obrigados a dirigir as suas peças de arquitetura a um GADU em que não acreditam. Se Deus ou a Energia Primordial é - segundo o crente – símbolo de tolerância, misericórdia e omnipresença, por que razão se lê em quase todos os catecismos maçónicos a expressão de que um maçon nunca será um ateu estúpido nem um libertino sem religião, inibindo assim o pedreiro livre ateu de expor as suas convicções, impelindo-o a faltar à verdade para com os seus irmãos e a ser intelectualmente desleal para consigo próprio.
Se no século XVIII o peso da igreja obrigava a cautelas e justificava moderação nas posições que afetavam diretamente a instituição Igreja de então – sanguinária e corrompida -, hoje, é dever de todo o buscador da verdade, cingir-se às evidências que nos chegaram pela mão da ciência, sendo sua obrigação denunciar toda e qualquer história que se fundamente apenas na crença e que continue a manter os seres humanos condicionados nas suas ações ou omissões, com a ameaça de castigos vindos de outra dimensão temporal e física como são as promessas de vida eterna e a ida para o Céu ou para o Inferno.
Este é para mim um dos grandes desafios da maçonaria. Um passo corajoso sem dúvida, mas a realidade deve prevalecer sobre a ilusão. O maçon deve perseguir a verdade e não esconder a cabeça na areia, por muito que isso custe. Só tolerar não chega, a maçonaria precisa promover uma discussão profunda e isenta sobre aquilo a que obriga os seus membros acreditar e devia denunciar abertamente aquilo que para mim é, somente, a maior e mais gravosa mentira de todos os tempos – O cristianismo e todas as religiões, com exceção talvez do budismo por ser de natureza diferente.
Talvez um bom começo fosse levantar a proibição de falar de política e de religião. Sem essa liberdade reconhecida, não haverá progresso nesta matéria, porque simplesmente é proibida a sua discussão.
Os verdadeiros maçons saberiam discutir estes assuntos com a máxima seriedade e elevação.
Obrigado e um bem-haja
Léo

Rui Bandeira disse...

Leo:

A Maçonaria Regular tem como princípios essenciais a crença num Criador e a não controvérsia sobre política ou religião em Loja.

O Leo sugere, precisamente, que se inverta a postura em relação a estes três princípios essenciais. Se tal sucedesse, o que resultaria seria qualquer outra coisa que não Maçonaria Regular. Se se muda a essência de algo, esse algo transforma-se em coisa diferente...

Desculpe a comparação, mas a posição do Leo equivale a vir alguém propor à Sociedade Protetora dos Animais que esta se passe a dedicar à caça e organize cursos de formação de técnicos de matadouro e de curtidores de peles...

De resto, o Leo sabe muito bem que existe já uma organização que admite ateus e onde é admitida a discussão sobre política e religião... Essa é para quem não quer ou não pode seguir os princípios da Maçonaria Regular. Os maçons regulares escolheram a sua via e seguem-na, tolerando e não criticando as escolhas diferentes de quem diferentemente decidiu escolher. Creio que se justifica a reciprocidade!

Leo disse...

Bom dia a todos e um agradecimento especial ao Sr. Rui Bandeira pelo seu comentário.
No comentário anterior deixei a minha opinião relativamente ao apelo do post quanto ao rumo a tomar pela maçonaria em geral e não quanto ao futuro de um ramo/via da Ordem em particular.
Na minha opinião, a existir mais do que uma via dentro da maçonaria deviam estas reunir-se para debater serenamente e sem tabus as questões que as separam tendo sempre em vista o que as une dentro do ideário maçonico.
As estruturas maçonicas pululam a um ritmo muito pouco maçónico. Não será este fenómeno indiciador de que algo mudou nas pessoas e nas suas convicções relativamente ao papel da ordem na sociedade e por isso se afastam das estruturas mais rígidas que se furtam educadamente a esse debate. Não seria enriquecedor para a ordem em geral que estas pessoas em particular se juntassem para expor os seus pontos de vista independentemente de pertencerem a esta ou aquela via?
Não conheço a organização "não religiosa" a que se refere o Sr. Rui Bandeira no seu comentário pelo que aproveito a oportunidade para perguntar de que organização se trata.
Grato pela atenção
Léo

Rui Bandeira disse...

Leo:

A estrutura que admite não crentes (ateus e agnósticos) e que não segue, pelo menos com o nível de rigor que existe na GLLP/GLRP, o princípio da não controvérsia política ou religiosa em Loja é o Grande Oriente Lusitano (GOL), que se insere no ramo evolutivo da Maçonaria que se convencionou chamar de "Maçonaria Irregular".

Com exceção destas diferenças (e ainda em relação à intervisitação com elementos da Grande Loja Feminina de Portugal), basicamente os restantes princípios são comuns, razão por que, havendo necessariamente separação institucional, existem as melhores relações pessoais entre obreiros das duas Obediências e, sempre que se justifica, cooperação em projetos que ambas as partes consideram de interesse social.

A Tolerância implica isto mesmo: a assunção das diferenças, sem quebra do respeito mútuo em relação às posições de que tem diferenças em relação a nós.

Em tom de brincadeira, não é inusual tratarmo-nos reciprocamente por primos...

Leo disse...

Bom dia Sr. Rui Bandeira

Grato pela sua resposta

Um bem-haja
Léo