25 abril 2016

Desde há 42 anos - para sempre!


Recordo que, quando eu era rapazote, havia algo que me impressionou ao ponto de não o ter esquecido. O dia 5 de outubro era, como voltou a ser depois de breve hiato, feriado nacional. Comemorava-se a Implantação da República. E, no telejornal, religiosamente seguido por todos lá em casa, nesse dia lá víamos sempre a reportagem das comemorações do aniversário da dita Implantação, em que os principais intervenientes eram uns caquéticos velhinhos, cada ano mais caquéticos e mais velhinhos, mas também cada ano menos em quantidade.

A minha mente infantil abismava-se então que se comemorasse a República, uma coisa tão natural como o ar que respiramos. Que tinha isso de especial? "Toda a gente" sabia que o normal era haver República, que isso da Monarquia era uma ultrapassada cena do passado, que desaparecera há mais de cinquenta anos (então...)! 

E então aquela coisa dos velhinhos a desfilarem e a colocar coroas de flores não sabia bem aonde, também me parecia algo bizarro. Que raio de ideia dos senhores, manifestamente frágeis, virem para a rua (ainda apanhavam alguma pneumonia e depois era o cabo dos trabalhos...) naquelas poses solenes, em vez de estarem comodamente em casa junto dos seus netos!

Precisei de crescer para entender que o regime republicano não era coisa tão natural assim, que havia vários países que optavam por manter o regime monárquico, que a Implantação da República não fora coisa fácil e implicara três dias de batalhas, com mortos a sério e suicídio de um dos comandantes da revolta quando pensava que esta tinha falhado e posterior reviravolta que assegurara o triunfo dos republicanos. Só mais crescido entendi que aqueles velhinhos frágeis e caquéticos eram o que restava dos combatentes da Rotunda e de outros locais por onde passou a revolta republicana, então vigorosos jovens na flor da idade que viram a morte desfilar diante dos seus olhos, que estiveram debaixo de fogo e fizeram fogo. Só então entendi que aqueles dias tinham sido tão importantes, tão determinantes, tão identitários para aqueles homens, que eles não se dispensavam, ano após ano, embora cada ano menos e cada ano mais frágeis, de evocar aquele evento.

Hoje, estando já eu a caminho da caquexia, senão velhinho pelo menos já meio velhote (decididamente usado e já muito fora do prazo de garantia...) entendo perfeitamente aqueles velhos republicanos e sou eu que não dispenso de evocar uma data para mim importante, determinante e identitária: o 25 de abril! Não que eu tivesse tido nele alguma participação, para além de a tudo ter assistido, empolgado e esperançoso. Tinha então menos de 19 anos e nem sequer estava de armas na mão porque tinha adiado o cumprimento do então obrigatório serviço militar, em virtude de ser estudante universitário.

Passaram 42 anos!

Pela minha vivência infantil em relação aos velhos republicanos, percebo perfeitamente que as crianças e jovens de hoje vejam com alguma indiferença o que eles consideram a bizarria de comemorar um golpe militar ocorrido muito antes de terem nascido e que os cotas mais velhos afirmam ter permitido a instauração da Democracia! Entendo perfeitamente que as crianças e jovens de hoje achem estranha esta comemoração. Então a Democracia não é tão natural como o ar que respiramos? 

É, pois, importante que os mais velhos não deixem de transmitir que, sendo a Democracia natural e desejável, não é necessariamente existente. Que a Democracia necessita constantemente de ser defendida, vivida, praticada e renovada.

Eu vivi mais de 18 anos da minha vida sob um regime político não democrático e sei a asfixia que, quando ganhei consciência da cidadania, tal me provocou. O meu pai viveu quase toda a sua vida em regime não democrático. Lembro-me perfeitamente de, em 1969, ter havido uma novidade: ia haver umas eleições em que era permitido que concorressem listas não afetas ao regime. Lembro-me de, nesse dia, o meu pai, agitadíssimo, receosíssimo, prudentíssimo, ter saído de casa para ir votar, com o boletim de vota na lista da situação num bolso do casaco e o boletim de voto na lista da oposição no outro bolso (então era assim, boletins separados, não havia cá quadradinhos nem cruzinhas...), após ter proibido terminantemente a minha mãe e os filhos de saírem de casa ou sequer assomarem à janela, não fosse haver algum problema, e de, ao regressar, ter-se dirigido imediatamente à cozinha, retirado do bolso o não utilizado boletim de voto na situação e pressurosamente tê-lo queimado, para que não houvesse provas que ele tinha votado na oposição, recomendando a todos que mantivéssemos a boca calada em relação à sua decisão de voto, que as paredes tinham ouvidos e a policia política do regime não era para brincadeiras!

Dou graças por as crianças e jovens do meu País sempre terem vivido em Democracia e não saberem, nem sequer imaginarem o que é viver sem ela! Recomendo vivamente que não tenham a Democracia como algo de garantido, como favas contadas, e a defendam, vivam e pratiquem. Que não a deixem estiolar nem fenecer, para não virem a sofrer a falta dela.

42 anos passaram. Hoje a Democracia parece-nos tão natural como o ar que respiramos. Felizmente muitos de nós não têm noção da sua falta. 

Comemoram-se hoje 42 anos do 25 de abril. Comemora-se hoje o evento que permitiu se restabelecesse a Democracia em Portugal. Que ela permaneça na nossa terra - para sempre!

Rui Bandeira

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