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15 junho 2006

"IN MEMORIAM" de um ENORME Humorista

Para os "antigos", o brasileiríssimo "Cruzeiro" foi, durante algum tempo, uma publicação de leitura quase obrigatória.
Nela sempre apareciam os bonecos/crónicas/estorinhas de um extraordinário humorista, Millôr Fernandes de seu nome.
Eu que tenho a mania de guardar "coisas" resolvi, hoje que é feriado (para os que trabalham...), tirar as teias de aranha a um escrito (?) do Millôr Fernandes e deitá-lo à V. consideração.
A questão é que é feriado (para os que trabalham...) entre feriados 'mais ou menos', uma data de gente preparou-se para férias (pequenas) e estão danados porque o S.Pedro resolver lembrar-se da gente e está a deitar chuva a sério por aí, um bocado espalhada, e a estragar as feriazitas ao povo (a malta julgava que o S.Pedro seria a 29 mas o Santinho não esperou e resolveu que a alcachofra precisava de ser regada)...
Então, para melhorar a disposição ao pessoal, aqui fica a minha pobre contribuição que se limita a copiar (mas digo qual é o autor...) aquilo que outros, muito mais dotados, fizeram e bem.

Bom feriado (para os que trabalham...) !


DEFENDAMOS A ROSCA !

Com razão ficou indignada
quando, na confeitaria,
lhe deram rosca quadrada.

Ah, num mundo de vasta tecnologia
está bem que tirem o peso ao homem
substituam a função da clorofila
e descubram a antimatéria,
- onde ? –
na própria matéria.

Mas madame tem razão
de se mostrar indignada
se lhe dão rosca quadrada.

Não se respeita nada ?
Vão endireitar o gancho ?
Rectificar o anzol ?
Fazer âncoras em bola ?
Bolas pentagonais ?
Bananas, tão bacanas,
serão corrigidas em fôrmas especiais
sem atenção à sua específica condição bananoplástica
que é a tortuosidade ?

Em que mundo pisamos
que não podemos confiar mais
nem mesmo
na estabilidade emocional da padaria ?

Em que mundo estamos
se o padeiro já não acredita mais
que uma rosca é redonda, is round, é rotunda ?

Devemos reagir, salvar a rosca a todo o custo.

Se deixamos que a façam quadrada logo a farão estrelada,
hexagonal, triangular,
indefinida, informal, concreta,
até tachista.

Negarão Proust com as suas Madeleines bizantinas.
E a busca
será feita em esquinas.

Fixemos definitavamente:
UMA ROSCA É REDONDA.

Abaixo os exegetas dos paralelogramas culinários
e os fãs das tangentes fermentadas com perpendiculares.
Morte aos que apregoam doces sinusoidais,
pastéis secantes, bombons piramidais.
Se não os detivermos nessa paranóia geométrica
Dentro em breve nem lembraremos mais
os limites da rosca:
Forma, côr, tostagem, liquefacção,
maciez e doçura.

E, perdida a rosca,
logo teremos, na cozinha,
feijões quadrangulares,
porcos octogonais
e galinhas multiplanas
misturadas a ovos... nunca ovais !

Mas esse pesadelo dietético
poderá ser detido facilmente
se todas as donas de casa reagirem
trazendo sempre,
na boca e na memória,
esta imagem tosca, mas obrigatória:

“Uma rosca é uma rosca,
é uma rosca,
é uma rosca... !!!”

MILLÔR FERNANDES – Cruzeiro, 24/11/1962

J.P.Setúbal