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27 outubro 2014

Reflexão sobre o " Livre Associativismo" e a sua relação com a Maçonaria…

(imagem proveniente de Google Images)
De tempos a tempos e em vários países do mundo, é posta em questão a obrigação da assumpção da pertença dos cidadãos em alguns tipos de associações, sejam de carácter privativo ou não. E por estes dias o assunto veio novamente a debate a nível parlamentar.

Naturalmente que apenas irei dar a minha opinião sobre o que à Maçonaria concerne, pois é geralmente em relação à Maçonaria que  este tipo de situações se torna mais evidente.

A Lei Portuguesa na sua Constituição da República,  afirma nos seguintes Artigos:
  •  Artigo 41º, sobre a "Liberdade de Consciência, Religião e de Culto":
    1. A liberdade de consciência, religião e de culto é inviolável.
   3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder. 
  •  Artigo 45º, sobre o "Direito de Reunião e Manifestação":
 1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização.
  •  Artigo 46º, sobre a  “Liberdade de Associação”:
  1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
3. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela.
4. Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.
E como a Instituição Maçónica não promove a violência, não tem qualquer desígnio contrário à lei do país (aliás um maçom no seu juramento assume a concordância e o dever de respeitar as leis do país onde se encontra!), não faz proselitismo nem obriga ninguém a aderir à mesma (quem a ela adere, fá-lo de livre consciência e vontade), não é uma Ordem militar nem a tal se propõe, objeta contra o racismo e a xenofobia em todas as suas formas e é acima de tudo uma Ordem de caractér iniciático e filantrópico, que defende os valores da Liberdade, Igualdade e da Fraternidade e que promove a evolução da sociedade e do seu progresso através do auto-aperfeiçoamento dos seus membros e da sua ação no mundo profano.
Logo, a Maçonaria e os seus membros podem e devem ser encarados como englobados nestes artigos da nossa legislação.
Desta forma, é uma “falsa questão” se tentar obrigar os maçons a assumirem ou não a sua condição maçónica, uma vez que a mesma não decorre de nada que seja considerado ilegal pelas leis portuguesas.
Não obstante, o que me parece que é o real problema de quem tenta obrigar os maçons, membros de alguma Obediência Maçónica a declarar a sua pertença a esta Augusta Ordem não seja apenas por desejar conhecer o nome dos seus membros, até porque a maioria é gente anónima do conhecimento público, não ocupam cargos importantes nas empresas onde trabalham ou nas associações e agremiações profanas a que pertencem.
Quem quer legislar contra a Maçonaria no que toca a cercear o direito ao livre associativismo e  à privacidade dos seus membros, quer saber acima de tudo, se os  membros de alguma Loja Maçónica nas suas profissões e nas suas relações profanas poderão cometer alguma ilegalidade em virtude dos seus juramentos e/ou relações fraternais.
Quero acreditar que tal não acontece e se tal efetivamente acontecer, a pessoa ou pessoas em questão não podem ser consideradas realmente como sendo maçons, uma vez que agem contráriamente àquilo a que a Maçonaria se propõe fazer e atentam contra os valores morais da própria Ordem e contra aquilo que juraram cumprir.
Mas, quem deseja criar leis e condições que permitam a obrigatoriedade de ser assumida a filiação maçónica para justificar também a sua ignorância e a sua curiosidade sobre o que se passa no seio de uma Loja Maçónica, será também para se informar sobre quem  esteve presente e o que se debateu nessas reuniões maçónicas.  Pois em relação ao povo em geral, estes o que querem conhecer é saber se o fulano” X” ou “Y” é reconhecido como maçon e com isso justificar a opinião que poderão ter sobre essa(s) pessoa(s). Tanto que comparo isso com a mesma avidez com que a generalidade da população lê  revistas “cor-de-rosa” para saberem o que se passa na vida de fulano “A” ou “B”. No fundo meros fait-divers, porque na prática o conhecimento de tais informações não lhes trarão qualquer mais valia e apenas servirá para “matar” a sua curiosidade sobre a vida dessas pessoas, pois essas informações serão irrelevantes para a sua vida em particular.
Mas o que é para mim o mais relevante a reter, é o ataque que se faz aos direitos e garantias dos cidadãos, uma vez que o livre associativismo e a liberdade de um cidadão pertencer a qualquer tipo de agremiação ou associação num futuro quiçá talvez não tão longínquo assim, irá ser posta também em causa.
Para já, o assunto apenas aborda quem pertencer a associações secretas ou de carácter discreto, mas basta se aceitar que tal possa ser exequível, também qualquer outro direito de pertença e militância poderá também ser posto em questão e com toda a legitimidade por quem o fizer.
Para quê e para quem importará saber quem pertence a uma Obediência Maçónica se também não nos é possível saber o que se passa no interior de outras  associações e conhecer a identificação dos seus membros?
Não terão essas mesmas associações o mesmo direito que a Maçonaria se arroga a ter?!  
O direito dos seus membros poderem reunir em privacidade, sem ter de assumir a sua filiação publicamente e com isso não serem incomodados por tal?

Obviamente que sim, a vida interna de uma associação apenas deve interessar aos seus membros ou a quem vive dessas e para essas associações. É uma questão de justiça social!
E numa época em que os cidadãos têm visto os seus direitos e garantias serem limitados, independentemente de quem os governa (pois acontece assim no mundo inteiro em virtude das crises financeiras e guerras que vão se sucedendo) , abrir-se mão de um direito tão básico e ao mesmo tempo tão importante como este, será o abrir de uma “Caixa de Pandora” que depois dificilmente será fechada. Porque neste momento a preocupação infundada que existe sobre a Maçonaria facilmente se poderá alargar a outra associação qualquer, independentemente do seu tipo ou classificação profana.
E uma vez que é natural ao ser humano se associar a algo ou a outrém - isso está na nossa natureza e no nosso ADN, pois o Homem é um animal gregário -,  ao criarem-se condições para que tal suceda, parece-me a mim que, para além de ser anti-natura, é regressar-se a tempos em que mal se podia abrir a boca ou simplesmente olhar outrém nos olhos sem que se tivesse o receio de o fazer... Tempos esses que não deixaram grande saudade nos portugueses.
Seria isso quanto a mim, um retrocesso civilizacional impensável para os dias de hoje!
Aliás, já no tempo do Estado Novo, o deputado à Assembleia Nacional, José Cabral (16/09/1885 – 10/06/1950) apresentou em 19 de janeiro de 1935 e posteriormente aprovado cerca de quatro meses depois, a 12 de maio, um projeto-lei para extinguir as “Sociedades Secretas” – este projeto-lei  foi até hoje um dos mais vis ataques que a Maçonaria sofreu no nosso país – que teve como réplica por parte do poeta e jornalista do Diário de Lisboa,  Fernando Pessoa (13/06/1888 – 30/11/1935), um artigo bastante conhecido ainda hoje, denominado por “"As Associações Secretas: Análise Serena e Minuciosa a um Projecto de Lei apresentado ao Parlamento”, no qual Fernando Pessoa faz uma certa apologia da Augusta Ordem Maçónica e em que confronta a Assembleia Nacional, na pessoa do deputado José Cabral, em que o exorta a deixar cair este projeto-lei atroz para a liberdade dos portugueses. Liberdade esta, que mais tarde veio a ser limitada quase na íntegra como todos nós o bem sabemos…
Por tudo isto, não quero acreditar que os  direitos e garantias que atualmente existem e que promovem a Liberdade dos cidadãos e que foram conquistados com lutas e algum sangue derramado, sejam perdidos assim tão irresponsavelmente e de uma forma tão irrefletida como o aparenta ser .
Seria muito triste para mim, que defendo os valores da Liberdade e da Igualdade, assistir às consequências desse hipotético cenário que alguns se propõem a criar.
É que não basta se pensar que este é um problema exclusivo dos maçons, este é um problema que afetará a todos nós como cidadãos livres que somos. Pois se “agora toca-me a mim, amanhã te tocará a ti”…

O que me leva a recordar o poema "A Indiferença" de Bertold Brecht (10/02/1898 - 14/08/1956), que foi baseado num sermão proferido pelo pastor luterano Martin Niemöller (14/01/1892 - 06/03/1984), que irei aqui partilhar convosco dada a contemporaneadade que o mesmo tem para este assunto em particular:
"Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.
Em seguida levaram alguns operários,
Mas a mim não me afectou
Porque não sou operário.
Depois prenderam os sindicalistas,
Mas não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.
Logo a seguir chegou a vez
de alguns padres, mas como não sou religioso, também não liguei.
Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde."
Concluindo, esta visão que tenho sobre este assunto pode parecer demasiado pessimista, mas basta se analisar o que se fez noutros tempos e noutros lugares e se depreenderá com alguma facilidade que tal não será tão irrealista assim…
Urge cada vez mais acabar com “falsos moralismos” e com os preconceitos ignobeis  de quem atenta indisplicentemente contra a Maçonaria.
Tudo o que há para ver, à vista está! Tudo é que é passível de ser conhecido, poderá ser conhecido.
Se dá trabalho obter tal conhecimento? Sim, dá trabalho! Mas nada nesta vida é obtido sem trabalho.
Por isso deixem lá os maçons com as suas lojas e as suas reuniões, que também eles não se importarão com os outros que também têm o direito de se reunir em privado nas suas associações…
Em democracia, o direito de uns é o direito dos outros!
É o direito de Todos Nós!

03 janeiro 2013

Pelos olhos dos meus irmãos



Os três rapazes olhavam alternadamente, de soslaio, uns para os outros, depois para os próprios sapatos, para os dedos das mãos, e para as paredes do quarto, sem saber o que dizer mais. Todos estudantes, partilhavam um apartamento próximo da faculdade que frequentavam - os três, e mais o Sandro. Este último não estava presente - e era dele que se falava, sem se chegar a nenhuma conclusão pois, se todos sabiam o que quereriam dizer-lhe, não faziam ideia de como dizê-lo. 

O Sandro, sempre despistado, parecia viver noutro mundo, sempre ruminando um cigarro de enrolar - quantas vezes apagado. Desleixado consigo mesmo, fazia a barba de quando em quando, para logo a deixar crescer - não por ato de vontade, mas por inércia ou desleixo. Mas o pior era o cheiro: quer ele quer o seu quarto empestavam todo o apartamento com um misto de suor e tabaco frios com roupa de cama usada semanas a fio, tudo agravado pela absoluta ausência de desodorizante.

Se o Sandro fosse um pulha, um inútil, um egoísta, seria fácil dizer-lhe cara a cara que deixasse de ser porco, ou que o queriam dali para fora. Mas não era assim. Excelente aluno - apesar de sempre distraído, parecia que sorvia o conhecimento do ar - era-lhe reconhecida a enorme disponibilidade - e mesmo entusiasmo - para explicar, a qualquer colega que lho pedisse, os pontos mais densos da matéria, e isto até que este de facto a apreendesse. Por tudo isto, e por muito mais, todos tinham o Sandro por um tipo às direitas a quem nenhum deles queria melindrar. Mas a "tal questão" tinha, forçosamente, que ser abordada.

As indiretas não pareciam fazer efeito: "Então, Sandro, que te aconteceu? Estás todo transpirado! Toma um duche, que te ficas a sentir melhor..." "Deixa estar, estou a apanhar aqui um ventinho à janela e já seca..." Chegaram a fazer um "regulamento" do apartamento, referindo que os quartos tinham que estar limpos; o Sandro apanhou as coisas que tinha espalhadas pelo chão, enfiou tudo dentro do guarda-fatos - sapatos, roupa suja, livros, enfim... - aspirou sumariamente, despejou os cinzeiros, e apareceu, todo sorridente, a dizer que do quarto dele não havia nada a apontar! Foi depois disto que se reuniram os três, sem saber o que fazer ou o que dizer, e acabaram por ficar de pensar como abordar o assunto.

O Chico lá ganhou coragem e, apanhando-se sozinho com o Sandro, foi direto à questão: que  o odor do quarto dele incomodava todos os restantes ocupantes do apartamento, e que para resolver o problema ele precisava de passar a lavar a roupa com mais regularidade, bem como de tomar banho e usar desodorizante diariamente. O Sandro ficou branco; nunca se apercebera de nada. Pouco habituado a gerir essas questões - em casa dos pais era sempre a mãe quem tratava da roupa e o mandava tomar banho quando entendia que estava a precisar - não se apercebia, sequer, do próprio odor corporal. "Eu... eu não costumo usar desodorizante... e no banho passo-me só por água e uso um pouco de sabonete... e não tenho roupa suficiente para estar a usar roupa limpa todos os dias... nem tenho onde a lavar cá... só quando vou a casa, e muitos fins de semana tenho que ficar cá..."

Foi a vez do Chico ficar atrapalhado, mas por pouco tempo. Prometendo manter a questão entre os dois, colocou à disposição do Sandro o seu champô e uma lata de desodorizante, emprestou-lhe toalhas lavadas e uma muda de roupa, passou a levar para casa dos seus próprios pais a roupa do Sandro sempre que este não podia ir a casa dos seus. Além disso, assim como quem não quer a coisa, foi-lhe deixando de uma vez umas cuecas ("ficam-me apertadas mas na loja não aceitam trocas de roupa interior"), de outra umas camisolas interiores ("a minha avó mandou-me tantas que não me cabem na gaveta") e ia zelando por que nunca faltassem os produtos de higiene pessoal.

A vergonha inicial (de um e de outro...) fora difícil de superar mas, tendo tomado consciência do problema, o Sandro endereçou-o o melhor que sabia. O quarto - se bem que desarrumado - já não cheirava a nada de diferente dos restantes, pois até passara a fumar na varanda. Fez algumas economias, e comprou roupa em quantidade suficiente para que nunca lhe faltasse uma muda de roupa limpa, e deixou de precisar de recorrer à boa vontade do amigo. Ao fim de umas semanas parecia outra pessoa, para grande estupefação dos outros dois, que não perceberam de onde tinha vindo a mudança. O Chico, satisfeito com os resultados, nunca mais tocou no assunto, e o Sandro ficou-lhe para sempre reconhecido - por isso, e por todo o resto.

//

Não há homens perfeitos, e os que se esforçam por ser melhores e se aperfeiçoar só conseguem fazê-lo sozinhos até certo ponto. É certo que o caminho é o de cada um, e o paradigma de perfeição aquele que cada um tenha estipulado para si mesmo. Cada homem é senhor do seu destino, pelo que não é legítimo que um imponha a outro os seus próprios padrões de perfeição interior. Isso não significa, contudo, que não haja mérito na interação com os demais. Pelo contrário. É que, se há limitação que nos caracteriza a esse nível,  é a impossibilidade de nos vermos a nós mesmos como os outros nos vêem; incapazes de apreciar, quantas vezes, os nossos próprios defeitos, não nos apercebemos da sua natureza, da sua dimensão, ou até da sua mera existência.

Poder contar com alguém que, fraternalmente, no-los faça notar - especialmente quando se trate de questões íntimas, melindrosas, ou de difícil abordagem - é, nestas circunstâncias, de enorme valia. Ter a certeza de que essa ajuda é desinteressada, construtiva e bem intencionada é essencial para que seja tida na devida conta. E é assim entre os maçons: cada um procurando tornar-se melhor sabendo que esse aperfeiçoamento é um trabalho individual cujos parâmetros cabe a cada um definir, mas ao mesmo tempo disponível para ajudar os irmãos e para aceitar a sua ajuda naquilo que não é capaz de atingir por si mesmo.

Já a sabedoria para discernir em que circunstâncias se deve oferecer a mão, e em que circunstâncias se deve guardar silêncio em respeito por uma opção diferente da nossa, é algo que só se vai aprendendo com o passar do tempo...

Paulo M.

10 julho 2012

Uma (nova) idade das trevas?




É conhecida a expressão "Idade das Trevas" como referência à Baixa Idade Média (séc. XI a séc. XV). Neste período de generalizado analfabetismo, o estudo era privilégio de uns quantos, e o conhecimento transmitido quase sempre em contexto monástico - e objeto de rigorosa filtragem de conteúdos que pudessem contrariar statu quoos dogmas vigentes. Não obstante, a produção intelectual e científica não cessou, e os avanços então decorridos vieram a constituir a base da Ciência Moderna.

O Iluminismo, movimento que surgiu no século XVIII de entre a elite dos intelectuais europeus da época, procurou promover a razão, o intercâmbio intelectual a ciência, opondo-se ferozmente à superstição, à intolerância e aos abusos por parte do poder vigente. Kant definiu assim o Iluminismo: "O Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! - esse é o lema do Iluminismo".

O fogo iluminista varreu a Europa e propagou-se à América. Muitos países, porém, viriam a manter-se arredados dos seus princípios até aos dias de hoje. "É uma questão de tempo", poderíamos dizer, "até que os povos atinjam a maturidade necessária; quando isso suceder, reclamarão para si também o que outros conquistaram já." Infelizmente, a história recente vem apontar-nos uma alternativa bem menos risonha.

Nos Estados Unidos da América - um dos países que nasceu, precisamente, do Iluminismo, e fundado nos seus princípios - há, hoje em dia, uma considerável fatia da população anti-intelectual que, evidentemente, renega e rejeita esses mesmos princípios. Ainda muito recentemente foi notícia o facto de o Partido Republicano, no Texas, ter publicado a sua "plataforma de princípios", dos quais consta este:
"Knowledge-Based Education – We oppose the teaching of Higher Order Thinking Skills (HOTS) (values clarification), critical thinking skills and similar programs that are simply a relabeling of Outcome-Based Education (OBE) (mastery learning) which focus on behavior modification and have the purpose of challenging the student’s fixed beliefs and undermining parental authority."

Numa tradução livre: "Educação baseada no Conhecimento - Somos contra o ensino de «Competências Elevadas de Raciocínio», proficiência de pensamento crítico e programas semelhantes, que não passam de novos nomes para «Educação Baseada em Resultados» que se focam na modificação do comportamento e têm o propósito de desafiar as crenças do aluno e minar a autoridade dos pais." Vejamos agora o que isto quer dizer.

De acordo com a taxonomia de Bloom, há seis níveis de objetivos educacionais: o conhecimento, a compreensão, a aplicação, a análise, a síntese e a avaliação. As "Competências Elevadas de Raciocínio" são, então, a análise, a síntese e a avaliação. Estes três níveis de proficiência são os mais importantes para o pensamento crítico.

A "Educação Baseada em Resultados" passa pela definição de aptidões que os alunos devem adquirir e pelas quais são avaliados, por oposição à educação tradicional mais centrada na memorização e aquisição de conhecimento. Os alunos são, assim, avaliados de acordo com a capacidade de executar determinadas tarefas mensuráveis - como, por exemplo, a capacidade de correr 50 metros em menos de um minuto - e não pelos inputs recebidos - como o número de aulas assistidas, ou os livros lidos.

As "crenças" de que se fala (fixed beliefs") são aquelas que definem o indivíduo e estabelecem a sua identidade; constituem a imagem que temos de nós mesmos, dos outros e das circunstâncias da vida e que de tão repetidas ao longo do tempo se tornaram arraigadas e difíceis de alterar.

Os maçons são cidadãos, e a maçonaria pretende promover o melhoramento da sociedade através do aperfeiçoamento de cada um. Lá porque numa loja maçónica não se discute política, não quer dizer - pelo contrário! - que os maçons - individualmente! - não tomem este ou aquele partido quanto a esta ou àquela questão. Quanto a esta questão concreta, fico horrorizado só de imaginar um maçon a subscrevê-la, tão contrária que é à própria essência da maçonaria. Mas se tal maçon existe, respeitaria a sua posição sem a discutir; pois se é certo que quem não aprende com os erros da História está condenado a repeti-los, não menos certo é que o direito ao erro está na essência da liberdade humana.

19 dezembro 2011

Liberdade e tratamento da doença



Os cuidados de saúde não se limitam aos cuidados do corpo e à erradicação da doença física. Se assim fosse não haveria psicólogos, psiquiatras ou assistentes sociais, não haveria formação específica para os prestadores de cuidados de saúde no que concerne a relação com o doente, e não haveria tantos estudos que apontam para que o melhor ou pior ânimo do doente fazem muitas vezes a diferença entre a convalescença e a morte.

Por outro lado, no nosso país (e em muitos outros) o paciente tem - desde que lúcido - sempre a última palavra quanto aos cuidados que lhe são prestados, podendo recusá-los ou procurar outros prestadores. Se um médico, o seu diagnóstico os a terapia que preconiza não nos agradam, podemos consultar outro, e escolher entre os dois - ou não escolher nenhum. A saúde de cada um é algo sobre que a cada um incumbe decidir, e não pode ser imposto a ninguém (que se encontre mentalmente capaz de decidir) qualquer tipo de tratamento.

Estas duas condicionantes levaram à inevitável mas controversa consequência - plasmada na legislação de muitos países - de que cabe ao paciente a escolha de uma terapia que o satisfaça - mesmo que esta seja menos convencional, como a acupunctura, homeopatia ou o reiki.  Em muitos casos, mesmo, os sistemas de saúde e as seguradoras pagam essas terapias.

A alternativa seria o Estado definir que terapias comparticipa e quais deixa para serem suportadas pelo próprio. Neste caso, os critérios podem ser os mais diversos. Pode adotar-se critérios estritamente objetivos, como o da comprovada eficácia em ensaios clínicos controlados ou o custo da terapia per capita. Por outro lado, pode ter-se em conta fatores estritamente culturais, como o da aceitação da população por certa prática, ou a sua revolta em caso de esta deixar de ser comparticipada.

Num mundo ideal, e numa perspetiva estritamente científica, seria talvez desejável que cada terapia fosse previamente validada em ensaios clínicos que comprovassem o seu grau de eficácia e os riscos que a mesma possa comportar. Todavia, como o mundo é imperfeito, não há dinheiro que pague esses ensaios a não ser que dos mesmos possam advir lucros para os seus promotores (ou, pelo menos, o ressarcimento dos custos do ensaio). Por outro lado, impedir o recurso a uma prática que, se bem que de eficácia duvidosa, não será, por outro lado, certamente prejudicial, não prejudica senão o próprio, e não caberá, talvez, ao Estado decidir sobre o que diz respeito à vida privada de cada um...

Em causa está, de facto, a liberdade individual. Terá o indivíduo o direito de tomar uma decisão com consequências funestas para si mesmo? Ou só tem a liberdade de decidir o que se espera que decida, e que tenha sido previamente validado? Caso decida "contra a corrente", terá o Estado, enquanto garante da Solidariedade Social, a obrigação de disponibilizar os meios para a aplicação de uma terapia de eficácia discutível e não comprovada? Terá o Estado o direito de recusar o pagamento de certos tratamentos - aceites e comuns noutras partes do mundo - por razões culturais?

Esta questão tem vindo a colocar-se recentemente no Reino Unido, com nova legislação a permitir aos sistemas de saúde, público e privados, rejeitar o pagamento de terapias muito dispendiosas, com o argumento de que o custo do tratamento de uma só pessoa permitiria tratar várias com uma terapia mais barata. Uma terapia ineficaz pode ser vista como um "sorvedouro" de dinheiro mal gasto. 

Tomemos uma qualquer doença que seja inevitavelmente mortal se não tratada, como a meningite bacteriana neonatal, por exemplo. Suponhamos que um certo tratamento para esta tem uma eficácia de 90%, e custa 10.000€ por pessoa. Outro tem uma eficácia de 95%, mas custa 100.000€ por pessoa. Tratar 1000 pessoas com o primeiro custaria 10 milhões de euros, e acarretaria 100 mortes; tratá-las com o segundo custaria 100 milhões de euros, e levaria a 50 mortes. Ou, por outras palavras: para salvar 50 pessoas, gastar-se-ia mais 90 milhões de euros: um milhão e oitocentos mil euros por cada pessoa adicionalmente salva da morte certa. Com esses 90 milhões poder-se-ia salvar, eventualmente, muito mais de 50 pessoas, desde que aplicados de outra forma. O custo para os 50 que morrem seria alto, mas para a sociedade no seu todo seria mais baixo.

Claro que estas contas são simplistas. Há que ter em conta o que sucede nos casos mais frequentes de que a doença desapareça por si mesma, mesmo sem tratamento. Se três quartos das pessoas não tratadas a certa patologia acabarem por se curar sozinhas, então qualquer tratamento, para ser digno desse nome,  deve permitir que se cure uma percentagem superior. Mas isso não basta: há o efeito placebo a ter em conta, que mais baralha as contas. E o efeito de várias terapias alternativas sobre a esperança e qualidade de vida. Enfim, o tema não é simples.

De facto, é muito difícil, e choca, chegar ao pé de várias vidas, colar-lhes uma etiqueta de preço, e escolher então as mais baratas. Numa sociedade com recursos ilimitados isso seria uma escolha inaceitável. Contudo, e como sabemos, o mundo não é perfeito, nem o dinheiro nasce nas árvores. Por outro lado, a qualidade de vida é, muitas vezes, preferível à "quantidade de vida": todos preferiríamos, certamente, viver apenas mais 2 anos sem dores de monta mas talvez um pouco narcotizados por causa da medicação que, lentamente, vá destruindo mais o nosso organismo já doente, a viver mais 3 anos sob dores horríveis.

A assistência espiritual é, muitas vezes, o paliativo mais eficaz - e o único "tratamento" que pode ser aplicado. A lei que temos no nosso país não é igual à inglesa, e talvez por isso determine o direito à assistência espiritual na doença, suportado pelo Estado, no pressuposto de que aumente a qualidade de vida da pessoa. De facto, a sociedade em que vivemos rege-se por um princípio muito claro: um homem, um voto. É uma democracia, não uma tecnocracia. E, se por um lado é revoltante que, nas urnas, toda a perícia de um especialista valha tanto quanto a ignorância de um qualquer patarata, a verdade é que ainda não se encontrou um sistema com menos defeitos...

Paulo M.

04 julho 2011

Bem comum e liberdades individuais



Li hoje uma notícia sobre um "motoqueiro" de 55 anos que, de cima da sua Harley, protestava contra a lei que passava a obrigar ao uso do capacete. Enquanto o fazia teve que fazer uma travagem brusca, foi lançado sobre o guiador, caiu de cabeça e, como não usava capacete... morreu.

Uma vez mais se me colocou esta questão: até onde pode, ou deve, a sociedade regular as liberdades individuais? Dever-se-á deixar ao juízo (ou falta dele...) de cada um o uso de capacete? E se o motoqueiro for um pai de família, que depende dele para o seu sustento? E se for uma pessoa com um cancro em fase terminal? E se do acidente decorrerem custos de tratamento enormes, pagos por todos os contribuintes - muitos dos quais até teriam votado a obrigatoriedade do uso do capacete?

O consumo de drogas deve ser liberalizado? E a condução sob a influência de drogas? E conduzir zangado? Se uma Testemunha de Jeová (religião que proíbe as transfusões de sangue) se apresentar inconsciente num hospital em consequência de um acidente, deverá o médico de serviço deixá-la morrer por falta de uma transfusão, ou salvar-lhe a vida recorrendo a algo que a sua religião proíbe, quando não haja tratamento alternativo? E se a pessoa estiver consciente e recusar a transfusão? E se for o filho pequenino dessa pessoa que esteja doente, e ela peça aos médicos que antes deixem o filho morrer do que lhe dêem uma transfusão?

Até que ponto podemos ou devemos sacrificar o indivíduo ao bem comum? Ou o bem comum ao indivíduo? Há séculos que estas questões se discutem. E há séculos que ficam sem resposta - ou pelo menos sem uma resposta categórica, uma vez que recebem respostas diferentes, cada uma fundamentada sobre distintas premissas. Não é, porém, por se saber a priori que não há uma resposta universal que deve deixar de se discutir estas questões. É importante que cada um tenha as suas próprias respostas, mesmo que estas sejam diferentes das daqueles que o rodeiam. E se não é essencial que todos afinem pelo mesmo diapasão, é desejável que todos tenham consciência da diversidade de respostas, e de que há pelo menos alguma legitimidade nessa diversidade.

Assim sucede - ou deve suceder - numa loja maçónica. Não é importante que todos pensem igual; pelo contrário, é bom que pensem diferente, para que todos tenham a oportunidade de aprender, desde cedo, o  respeito pelas ideias com que não se identificam.

Paulo M.

04 abril 2011

Sei Ruhig!



Estive na Polónia no fim de semana passado, razão por que não escrevi o meu costumeiro artigo semanal. Foi uma visita-relâmpago, com visita a Auschwitz e uma voltinha por Cracóvia para desanuviar o espírito. A fotografia acima foi tirada nas melhores "casernas" onde dormiam os prisioneiros; sim, as melhores, que as piores eram todas de madeira, num local onde a temperatura desce frequentemente abaixo dos -20 ºC no Inverno.

Na parede que se vê, uma ordem - "SEI RUHIG!", ou "Estejam calados!" - chamou-me especialmente a atenção, pois logo me recordou o meu tempo de Aprendiz e Companheiro, em que também tinha que manter silêncio. Porém, logo, horrorizado, afastei a ideia de sequer comparar duas realidades tão díspares. Contudo, voltei à carga, pensando desta vez: "Porque é que me repugna tanto, afinal, comparar estes dois silêncios? É claro que são muito diferentes, mas o que é que os distingue tanto?"

Ali estava eu, embrenhado nestes meus pensamentos, quando ouço de uma das pessoas que me acompanhava uma observação nestas linhas: "O que me faz mais impressão é que eles não tinham para onde fugir, como mudar nada, eram só conduzidos, não tinham escolha nenhuma. Não tinham liberdade nenhuma, nem esperança de a vir a ter."

De facto, não tinham. O seu silêncio - como tudo o resto - era forçado e imposto para seu prejuízo. Já o meu, só era forçado e imposto enquanto eu quisesse ser maçon - coisa a que ninguém me obrigava - e, mesmo assim, tinha um horizonte temporal. Mas, mais do que isso, era-me imposto em meu proveito. Era, assim, uma liberdade condicionada, para a qual eu tinha uma válvula de escape: podia sempre pedir para sair, coisa que ninguém me impediria de fazer.

Eles... pois, também acabavam todos por sair...

Não tenho alento para escrever mais. Deixo-vos a recomendação de que, se nunca o fizeram, procurem na Wikipédia e no YouTube artigos sobre Auschwitz. Há muita controvérsia sobre o tema, mas a Luz surge do confronto dos opostos - e a liberdade só se pode exercer na escolha entre alternativas...


Paulo M.

10 janeiro 2011

Porquê "meu irmão", e não "meu amigo"?


Os maçons tratam-se, entre si, por "irmão", tratamento que é explicitamente indicado a cada novo maçon após a sua iniciação. Imediatamente após terminada a sessão de Iniciação é normal que todos os presentes cumprimentem o novo Aprendiz com efusivos abraços, rasgados sorrisos e, entre repetidos "meu irmão", "meu querido irmão" e "bem vindo, meu irmão", recebe-se, frequentemente, mais afeto do que aquele que se recebeu na semana anterior.

O que seria um primeiro momento de descontração torna-se, frequentemente, num verdadeiro "tratamento de choque", num momento de alguma estranheza e, quiçá, algum desconforto para o novo Aprendiz. Afinal, não é comum receber-se uns calorosos e sinceros abraços de uns quantos desconhecidos, para mais quando estes nos tratam - e esperam que os tratemos - por irmão... e por tu! Sim, que outro tratamento não há entre maçons, pelo menos em privado - que as conveniências sociais podem ditar, em público, distinto tratamento.

O primeiro momento de estranheza depressa se esvai - e os encontros seguintes encarregam-se de tornar naturalíssimo tal tratamento, a ponto de se estranhar qualquer "escorregadela" que possa suceder, como tratar-se um Irmão na terceira pessoa... Aí, logo o Aprendiz é pronta e fraternalmente corrigido, e logo passa a achar naturalíssimo tratar por tu um médico octogenário, um político no ativo, ou um professor universitário. E de facto assim é: entre irmãos não há distinção de trato.

Não se pense, todavia, que todos se relacionam do mesmo modo. Afinal, não somos abelhas obreiras, e mesmo entre essas há as que alimentam a rainha ou as larvas, as que limpam a colmeia, e as que recolhem o néctar. Do mesmo modo, todos os maçons são diferentes, têm distintos interesses, e não há dois que vivam a maçonaria de forma igual. É natural que um se aproxime mais de outro, mas tenha com um terceiro um relacionamento menos intenso. Não é senão normal que, para determinados assuntos, recorra mais a um irmão, e para outros a outro - e podemos estar a falar de algo tão simples quanto pedir um esclarecimento sobre um ponto mais obscuro da simbologia, ou querer companhia ao almoço num dia em que se precise, apenas, de quem se sente ali à nossa frente, sem que se fale sequer da dor que nos moi a alma.

Mas não serão isto "amigos"? Porquê "irmãos"? Durante bastante tempo essa questão colocou-se-me sem que a soubesse responder. Sim, havia as razões históricas, das irmandades do passado, mas mesmo nessas teria que haver uma razão para tal tratamento. O que leva um punhado de homens a tratarem-se por "irmão" em vez de se assumirem como amigos? Como em tanta outra coisa, só o tempo me permitiu encontrar uma resposta que me satisfizesse. Não é, certamente, a única possível - mas é a que consegui encontrar. 

Quando nascemos, fazêmo-lo no seio de uma família que não temos a prerrogativa de escolher. Ninguém escolhe os seus pais ou irmãos de sangue; ficamos com aqueles que nos calham. O mais natural é que, em cada núcleo familiar, haja regras conducentes à sua própria preservação e à de todos os seus elementos, regras que passam, forçosamente, pela cooperação entre estes. É, igualmente, natural que esse fim utilitário, de pura sobrevivência, seja reforçado por laços afetivos que o suplantam a ponto de que o propósito inicial seja relegado para um plano inferior. É, assim, frequente que, especialmente depois de atingida a idade adulta, criemos laços de verdadeira e genuína amizade com os nossos irmãos de sangue, que complementa e de certo modo ultrapassa, em certa medida, os meros laços de parentesco.

Do mesmo modo, quando se é iniciado numa Loja - e a Iniciação é um "renascimento" simbólico - ganha-se de imediato uma série de Irmãos, como se se tivesse nascido numa família numerosa. Neste registo, os maçons têm, uns para com os outros, deveres de respeito, solidariedade e lealdade, que podem ser equiparados aos deveres que unem os membros de uma célula famíliar. Porém, do mesmo modo que nem todos os irmãos de sangue são os melhores amigos, também na Maçonaria o mesmo sucede. Não é nenhum drama; o contrário é que seria de estranhar. Diria, mesmo, que é desejável e sadio que assim suceda, pois a amizade quer-se espontânea, livre e recíproca. E, tal como sucede entre alguns irmãos de sangue, respeitam-se e cumprem com os deveres que decorrem dos laços que os unem, mas não estabelecem outros laços para além destes. Pode acontecer - e acontece. Mas a verdade é que o mais frequente é que, especialmente dentro de cada Loja, cada maçon encontre, de entre os seus irmãos, grandes amigos - e como são sólidos os laços de amizade que se estabelecem entre irmãos maçons!

Paulo M.

14 novembro 2010

A clivagem racial e cultural e o insucesso escolar


Li esta semana um artigo sobre o insucesso escolar dos negros nos EUA. E depois outro idêntico sobre o Reino Unido. Há anos que estes estudos vêm sendo feitos e refeitos e, não obstante a adoção de variadas estratégias com o propósito de mitigar as diferenças, chega-se sempre a resultados semelhantes: certos grupos raciais de estudantes obtêm piores notas e abandonam mais a escola do que outros. Estes estudos comparam frequentemente os resultados obtidos por crianças, adolescentes  e jovens oriundos de famílias do mesmo estrato sócio-económico - leia-se: habitando a mesma zona e frequentando as mesmas escolas, com pais com salários idênticos e idênticas habilitações.

É claro que, sempre que um estudo desta índole é feito, logo clamam vozes acusando-o de racista e discriminatório. Recordo que os factos não podem sê-lo, mas apenas, e eventualmente, a interpretação dos mesmos. Contudo, será difícil fazê-lo a estudos que constatem encontrar-se acima da média os estudantes de ascendência asiática, seguidos dos descendentes de judeus e de indianos, não obstante colocarem os de ascendência africana no fim da cauda. Os factos foram estes e, tendo sido recolhidos e tratados de acordo com as melhores práticas e normas da estatística, não serão passíveis de grande discussão. Já as tentativas da sua interpretação - e, especialmente, as medidas a tomar - levantam interessantes questões.

Uma das conclusões hoje em dia mais bem fundamentadas é a de que a questão não é de modo algum racial, mas cultural, e as suas raízes podem encontrar-se bem fundo na educação que as famílias dão às suas crianças desde o berço até que ingressam no sistema escolar. As expetativas dos pais para com os seus filhos por um lado, a forma como entendem o papel da escola por outro, condicionam o apoio - ou a falta dele - que as crianças receberão do seu núcleo familiar no sentido da obtenção de melhores resultados escolares.

É assim que, em famílias de ascendência asiática - em que o respeito quase reverencial para com os mais velhos é um valor cultural muito forte, e em que o trabalho e o esforço são entendidos como parte da normalidade da vida e como um caminho para o sucesso, o que leva os pais a andar "em cima dos filhos" para os fazer estudar e fazer os trabalhos de casa - as crianças têm, em média, dos melhores resultados escolares. Por oposição, famílias em que as crianças tratem os pais com displicência, passem o tempo livre a ver televisão ou na rua com os amigos, não se esforçando por obter bons resultados - e, mesmo, chamando a isso "to act white" (diríamos nós: "armar-se em branco") - não terão as mesmas alegrias na hora de assinar o boletim das notas.

Também importante é a diferente atitude  dos pais para com a escola e para com o seu próprio papel no sucesso escolar dos filhos. Enquanto que uns delegam por completo na escola todas as tarefas atinentes ao bom aproveitamento escolar, outros vêem a escola um parceiro sobre o qual não podem colocar todo o peso da educação da criança, e outros ainda, desconfiados da eficiência do sistema escolar, complementam-no das mais diversas formas, de explicações particulares a escolas de línguas, de música, de estudo acompanhado, sei lá... Certo, certo, é que será, essencialmente, o tipo de educação familiar o principal fator determinante para o sucesso escolar das crianças.

Por fim, não se pode generalizar: cada caso é um caso, cada criança é única, cada família é diferente. Pode, mesmo assim, tentar encontrar-se padrões, e tentar encontrar as causas dos problemas. Não basta, aqui, encontrar correlações: é mesmo necessário encontrar a causalidade.

Face a estas conclusões, que medidas se pode tomar? Aqui a questão torna-se, subitamente, muito mais delidada. Será que cabe ao Estado ensinar os pais a educar os filhos? Será o estilo de educação que cada um recebeu e transmite aos descendentes parte integrante da sua cultura? E sendo-o, poderá ou deverá o Estado dar orientações precisas no sentido de que as crianças - para bem destas últimas, entenda-se - devam ser educadas desta ou daquela maneira? Contra, eventualmente, a vontade dos pais? O respeito pela cultura de cada um, pela sua auto-determinação e, por fim, pela sua liberdade, não iriam colidir com tais hipotéticas medidas?

Esta questão, apesar de melindrosa, poderia perfeitamente ser discutida numa Loja como a Mestre Affonso Domingues. A questão levantada é filosófica, antropológica e, apesar de também política, não o é de forma partidária ou inevitavelmente conducente a divisões entre posições tomadas. Traz informação que é, certamente, útil a que cada um de nós entenda melhor o mundo que o rodeia, e ajudará, certamente, a combater preconceitos retrógrados. Estou certo de que qualquer opinião formulada seria no sentido de se dar prevalência ao respeito pela liberdade individual, que não haveria qualquer comentário racista - muito pelo contrário, e que seria salientado que a tolerância só faz sentido se houver diversidade. No fim, todos manifestariam agrado com o tema tratado, e cada um sairia com uma posição forçosamente diferente de todos os demais, mas enriquecida pela exposição a ideias diferentes daquelas que possuía.

Como vêem - e ao contrário do que dizem algumas vozes - há, numa Loja Maçónica, muito mais a discutir do que a cor dos aventais ou a decoração do templo.

Paulo M.

11 outubro 2010

Vida em sociedade: confiança vs. ordem?


A população mundial há apenas 200 anos era 8 vezes menor do que é hoje. Recuemos alguns milénios e veremos a população mundial reduzir-se a poucas dezenas de milhões, número que hoje associamos a uma grande cidade. Primeiro nas tribos nómadas, depois nas aldeias após o advento da agricultura, agremiavam-se poucas dezenas de pessoas que se conheciam e conviviam do berço ao túmulo. Não havia como se esconder numa pequena povoação; mais valia não se ter nada a ocultar. Sabia-se precisamente quem eram "os nossos" e quem eram "os outros", os "da casa" e os "de fora". Se algo a isso obrigava, tinha que se fugir para outra povoação mais longínqua; não havia como permanecer e passar despercebido. Esse facto condicionava fortemente o comportamento das pessoas, que agiam em função da reação da comunidade, que por seu lado estava vigilante e atenta (sempre houve coscuvilheiras...) e caía implacavelmente em cima do prevaricador.

Como a Terra não estica, o progressivo aumento de população traduziu-se, inevitavelmente, num aumento de densidade populacional - mais pessoas por quilómetro quadrado - o que acarretou um maior número de contactos com um maior número de desconhecidos anónimos, de que decorre um maior número de conflitos. Ao mesmo tempo, ia-se criando um nevoeiro difuso decorrente do aumento de número, que impedia que se conhecesse, já, a totalidade dos "nossos", e não se conseguisse distingui-los dos "outros". A confiança que se tinha começa a declinar - as portas passam a ter fechaduras, e estas passam a ficar trancadas. Surgem crimes cuja autoria se desconhece.

Hoje em dia, a elevadíssima densidade populacional, especialmente nas zonas urbanas, levou a que a convivência nas sociedades modernas seja fortemente regulada, a um ponto que seria impensável há pouco tempo atrás. Não precisamos de recuar muito - basta fazê-lo uma década, para quando se podia viajar tranquilamente de avião para todo o lado sem o verdadeiro strip-tease abelhudo a que hoje nos sujeitam - para vermos em que curto espaço de tempo foram criadas tantas defesas, tantas barreiras, tantos controlos. A partir de certo ponto, os controlos deixam de ser instrumentais, e passam a constituir um fim em si mesmos, propulsionados por toda uma indústria que deles se alimenta. Cada vez há menos confiança da polícia no cidadão - que, afinal, pode ser um bandido - e deste na polícia - que, afinal, tem a faca e queijo na mão para cometer os abusos que entenda. O poder político, esse, desconfiado de ambos e numa posição altaneira, produz leis a um ritmo acelerado - muitas das quais nem os cidadãos cumprem, nem a polícia consegue fazer cumprir.

E neste momento interrompo este texto para vos convidar a ver este video. Tomar-vos-á apenas 5 minutos. Para quem o não queira ou não possa ver, descreve como, na baixa de uma cidade de Inglaterra, foram eliminados por completo os semáforos e a maioria dos sinais de trânsito, regulando-se este apenas pelas regras mais básicas de prioridade. O resultado? O trânsito parece mais caótico - com todos a andar ao mesmo tempo - mas desapareceram as longas filas nos semáforos e grandes tempos de espera. O tráfego automóvel adquiriu uma fluidez nunca vista, e isto sem se diminuir o número de viaturas e até diminuindo o número de acidentes! Uma das habitantes relata, estupefacta, que o percurso que antes lhe levava mais de 20 minutos é agora feito em 5. E a cidade parece outra, sem filas de carros em ponto morto e a deitar fumo. As pessoas são mais cordiais ao volante, e muitas dão passagem com um sorriso. Só os cegos se queixam de que as mentalidades demoram a mudar, e têm medo de atravessar a rua sem o conforto dos semáforos e sinais sonoros nas passadeiras para garantir que os carros param mesmo. Este problema está presentemente em estudo, e quer-se resolvido.

Eis como, deixando as coisas nas mãos do cidadão comum que age num espaço público perante a vigilância atenta dos demais peões e condutores, se consegue obter um modelo muito mais justo e perfeito de circulação. Eis como se muda uma cidade sem revoluções, sem derrubar leis, e sem atentar contra a vontade de uma população - fazendo-o estritamente a partir do edifício  legal existente. Se a maçonaria regular fosse uma autoridade de trânsito, arrisco dizer que seria assim que deliberaria.

Paulo M.

01 outubro 2010

Correlação e causalidade (III)



Por esta hora estarão já uns quantos a pensar: "Podia ter-lhe dado para pior. Falar de coisas que nada têm que ver com a Maçonaria num blogue sobre Maçonaria..." Quem assim pensar está rotundamente equivocado, por três razões.

Em primeiro lugar, porque, como disse já, confundir estes dois conceitos leva-nos a conclusões precipitadas e, frequentemente, erradas e afastadas da verdade, porque ilógicas; e o estudo da Lógica é parte integrante da formação de um maçon. De facto, o estudo das Artes Liberais - base da formação para o gentlemanship - é promovido e incentivado entre os maçons.

Em segundo lugar porque um meio a que os maçons recorrem para se aperfeiçoarem consiste, precisamente, na exposição aos demais das sua próprias conquistas, das suas próprias conclusões e do seu próprio aperfeiçoamento, para que cada um possa dela retirar os ensinamentos que tiver por convenientes. Neste caso, estes textos, decorrentes da minha própria pesquisa e especulação, refletem o meu percurso na busca de algumas razões que quero agora partilhar convosco.

Como sabeis, uma das diferenças entre a Maçonaria Regular e a Maçonaria Liberal consiste na obrigatoriedade - numa - e a sua ausência - na outra - de crença num Ser Supremo, a que chamamos, para não dar prevalência à terminologia de nenhum credo religioso, "Grande Arquiteto do Universo". Começando por ser estritamente cristã, a Maçonaria Regular alargou o âmbito das fés "aceites", até aceitar qualquer crença em qualquer Ser Supremo, desde que não fosse a crença em coisa nenhuma. A Maçonaria Liberal aceita no seu seio quem tenha ou não qualquer crença. A Maçonaria Regular proíbe a discussão ou controvérsia religiosa ou política em loja; a Maçonaria Liberal promove ambas.

Mas porquê estas restrições? Não poderá surgir uma discussão sadia sobre religião entre pessoas de entendimentos religiosos distintos? Não poderá ser útil a discussão política entre irmãos de facções opostas, quiçá promovendo um entendimento que em mais contexto algum seria possível? E não poderia um ateu aperfeiçoar-se e auxiliar outros no seu respetivo aperfeiçoamento, com respeito pela crença dos demais? Claro que sim! Então porque é que nem um Grão-Mestre, com a unanimidade de toda a sua Obediência,  pode mudar alguns princípios da Maçonaria Regular?

Estas questões colocavam-se-me há já algum tempo, quando me surgiu uma resposta: os Landmarks da Maçonaria nada explicam, apenas enunciam, e isso basta. Não é necessário saber-se de que é feita uma aspirina - e muito menos entender-se como interage com o nosso organismo - para que ela nos livre de uma dor de cabeça. Não precisamos de provar a causalidade para nada - basta-nos constatar a correlação. Toma-se a aspirina e - puf! - lá se foi a dor de cabeça. Mesmo sem se perceber porquê.

Do mesmo modo, determinadas regras - algumas velhas de três séculos - não precisam de se justificar.  Passaram já a prova do tempo, e este tem-lhes dado razão. São como são, e moldam a Maçonaria de um modo com que os maçons se identificam. Como a aspirina, funcionam sem que saibamos muito bem porquê. Se compreendermos como funciona a aspirina, e com base nesse conhecimento a alterarmos de modo que atue de outra forma, tenha outros efeitos, trate doutras patologias, obteríamos talvez um medicamento melhor - mas não era aspirina. Também podíamos passar a aceitar que se jogasse futebol com a mão - mas o jogo,  ao sofrer tal alteração de dinâmica, deixava de ser futebol. E também como é evidente, muita coisa se poderia mudar na Maçonaria - mas deixava de ser, de certeza, a Maçonaria que conhecemos e, quem sabe, deixaria, de todo, de ser Maçonaria. E por isso, mudar por mudar, fica como está.

Paulo M.

27 setembro 2010

Correlação e causalidade (II)



Quando, ainda pequenos, começamos a aperceber-nos do mundo que nos rodeia, tudo é inesperado, e o controlo que temos sobre a nossa realidade imediata é muito reduzido. Com a repetição dos acontecimentos em circunstâncias semelhantes vamo-nos apercebendo de padrões, coisa que o nosso cérebro está especialmente "afinado" para detetar. Apercebemo-nos, deste modo, que logo após uma coisa sucede, normalmente, uma segunda e, ao fim de algumas repetições, quais cães de Pavlov, começamos a salivar logo que ouvimos a sineta.

Pode ser impossível memorizar todas as ocorrências de um fenómeno frequente, mas muito fácil recordar uma regra que as traduza e resuma. A questão que se coloca é, por um lado, a da fiabilidade da regra para explicar os acontecimentos passados, e por outro a capacidade de prever os acontecimentos futuros. E, mesmo quando a encontramos - a regra perfeita que explica a correlação perfeita - nada fica explicado, apenas registado.

Suponhamos que eu pego num copo de água e o provo. Não sabe a nada - ou não deve saber, pois a água pura é insípida e inodora. Agora pego num pouco de açúcar, deito-o na água e provo. A água passou a "saber a doce"! Posso repetir esta experiência as vezes que quiser, até chegar a uma conclusão: de todas as vezes que deitei açúcar na água a água ficou doce. A partir desta constatação vou inferir uma regra que, espera-se, seja universal: sempre que alguém deitar açúcar na água, esta fica doce. Estabelecemos uma correlação.

Esta informação é útil? Claro que sim. Perguntem-no a qualquer pessoa que trabalhe numa cozinha. Mas explica verdadeiramente alguma coisa? Claro que não. Ficamos a saber que a água fica doce, mas não sabemos porquê. Para isso, teremos que estudar as papilas gustativas, os recetores que detetam os iões presentes no açúcar, e os estímulos gerados nas mesmas para o cérebro. Aí, sim, podemos dizer que entendemos o fenómeno, e que, da correlação, passámos à causalidade: o açúcar é, de facto, a causa do sabor a doce. Com base nesta informação, e cientes de como funciona a nossa língua, podemos, agora, inventar coisas novas, como adoçantes que não tenham as propriedades do açúcar. E que nos adianta isso sobre o conhecimento inicial de que o açúcar adoça a água? Por vezes, muito; as mais das vezes, nada para além da satisfação de entendermos um pouco melhor o nosso mundo.

A maioria do conhecimento que temos é meramente correlacional, e não estabelece qualquer prova quanto à causalidade. Uma correlação consegue-se pegando nos dados, na observação dos fenómenos repetidos muitas vezes, e inferindo, através de métodos matemáticos, uma ligação entre eles. A correlação, contudo, nada demonstra por si mesma. Peguemos, por exemplo, no crescimento semanal, em centímetros, das tulipas de uma certa estufa, ao longo de alguns meses; e no preço, em euros, das botas de neve numa loja de desporto.  Poderia suceder, por mero acaso estatístico - ou por qualquer outra razão - que houvesse um a correlação perfeita entre ambas as medidas. Uma correlação é algo de objetivo e indesmentível por definição: contra factos não há argumentos, como se costuma dizer.

Já o mesmo não pode dizer-se das conclusões de causalidade supostamente decorrentes de tal correlação. Seria, por exemplo, pouco sensato dizer-se que "o crescimento das tulipas torna as botas mais caras", ou que "as tulipas crescem tanto melhor quanto mais caras estiverem as botas de neve". Pior, ainda, seria aumentar-se o preço das botas esperando que isso aumentasse a taxa de crescimento das tulipas... Já, por outro lado, dizer-se que "quanto mais alta a temperatura, mais crescem as tulipas por um lado, e mais raras são as botas de neve nas lojas - pois terão sido vendidas na época fria - o que as torna mais caras" pode ter todo o cabimento - mas carece de demonstração para se poder estabelecer uma causalidade.

Contrariamente à correlação, estritamente objetiva, a causalidade implica sempre uma dose de especulação e de juízo sobre os dados objetivos que lhe darão suporte. Estabelecer uma correlação é, muitas vezes, trivial; provar uma causalidade é, por outro lado, frequentemente um desafio, para não dizer impossível. É, quase sempre, um trabalho árduo. Contudo, provar-se uma causalidade permite-nos chegar mais fundo, entender melhor, alargar o conhecimento dos conceitos em causa, coisas que a mera correlação não garante. Deveremos, por isso, abandonar as correlações e focar-nos nas causalidades? Claro que não. Devemos é saber distingui-las, dar a umas e a outras o devido valor e, acima de tudo, não tomar por causalidades o que não passa de meras correlações - falácia que muitos órgãos de comunicação social, ávidos da nossa atenção, repetem vezes sem conta.

Paulo M.

24 setembro 2010

Correlação e causalidade (I)

 
O governo de um país, preocupado com as assimetrias verificadas no rendimento escolar dos seus cidadãos mais jovens, encomendou um estudo que permitisse determinar uma forma eficaz e eficiente de aumentar os níveis de literacia da porção mais desfavorecida dessa faixa populacional. A metodologia adotada era simples e, aparentemente, inatacável: pretendia-se estudar as famílias cujos filhos tivessem melhor rendimento escolar, e isolar as variáveis determinantes para as diferenças verificadas. Notou-se, durante o estudo, que havia, nas casas dos miúdos com melhores notas, determinados livros que pautavam pela ausência nas famílias dos miúdos com resultados mais baixos: clássicos da literatura, livros infantis e juvenis, dicionários e enciclopédias, entre outros.

Face a isto, o que decide o governo fazer? Ora, muito apropriadamente, estabelecer uma "biblioteca familiar básica" com base nos livros detetados, adquirir milhões de livros e, semanalmente, enviar um diferente para cada uma dessas famílias cujas crianças tinham piores notas. Excelente ideia - no papel. E o resultado? Zero. Os livros não tiveram qualquer impacto mensurável.

"- Mas como é possível?!" - perguntarão. Muito simplesmente - especulou-se depois - porque não era dos livros que decorriam as boas notas, mas de toda uma cultura familiar de que os livros eram um mero sintoma. Assim, nas famílias cujos pais detinham um nível de escolarização superior, ou um nível cultural mais elevado, era natural que existissem livros que lhes interessassem ou que achassem que interessariam aos filhos. Os bons resultados adviriam do tipo de contacto, de atividades, do estilo de educação que os pais imprimiam nos filhos, e quem nem um milhão de livros poderia substituir.

Mas não nos fiquemos por aqui. Já todos ouvimos certamente dizer que "um ou dois copos de vinho tinho por dia tomados às refeições fazem bem ao coração". De facto, há estudos que apontam para uma fortíssima correlação entre o consumo moderado e regular de vinho tinto e uma boa saúde cardíaca. O que poucos saberão é que, estudo clínico após estudo clínico, as farmacêuticas têm - em vão - tentado isolar as substâncias do vinho responsáveis por esse efeito. Parece que o efeito se desvanece assim que o vinho é separado nas substâncias que o constituem. Pior: se o vinho tinto, por si mesmo, foi administrado como se de um medicamento se tratasse, de forma controlada e medida, deixa de apresentar qualquer efeito.

Uma vez mais, conjetura-se que quem pratica esse consumo moderado - os tais dois copitos por dia de vinho tinto - é quem, por um lado, tem algum poder económico que lho permita, e por outro lado não caia em exageros ou em excessos de consumo. Em suma: alguém com dinheiro para investir na sua própria saúde e bem-estar, e com um estilo de vida descontraído que lhe permita fazer refeições sem pressas, quiçá em boa companhia, mesmo que não consuma vinho, terá certamente menos problemas cardíacos do que a média... Uma vez mais, o consumo de vinho seria um sintoma, um indicador, e não uma causa.

Estes exemplos são bem ilustrativos da diferença entre "correlação" e "causalidade". Para haver correlação entre dois fenómenos basta que se detete que quando um se verifica mais, ou outro também se verifique mais (ao que se chama uma correlação positiva), ou se verifique menos (caso em que passa a ser uma correlação negativa). No primeiro caso havia uma correlação entre os livros e o sucesso escolar; no segundo, entre o consumo de vinho e a doença cardíaca. Contudo, para que haja causalidade, é necessário que se prove que uma das ocorrências foi causada pela outra - o que nem sempre é fácil, pois obriga a que se descubra, com perfeita clareza, os mecanismos que leva de um estado ao outro.

De facto, a indústria farmacêutica desconhece as razões por detrás do funcionamento de muitos medicamentos à venda no mercado; não fazem ideia de qual seja o nexo de causalidade, apenas conhecem a existência de uma correlação. Para estabelecer a correlação basta observar e reter; contudo, para determinar a causalidade é necessário, através do raciocínio, procurar a regra, a fórmula, a razão por detrás dos fenómenos ocorridos. Especulativa que é, cada uma dessas regras pode sempre ser refutada caso se encontre um caso concreto à qual ela se não aplique; tem, então, que se encontrar uma nova regra de que decorram os mesmos resultados para o que foi já estabelecido, mas que comporte ainda os resultados dos casos novos.

É esta a base do conhecimento e do método científicos: a observação - e mensuração - repetida dos fenónenos, a especulação das regras a partir dos resultados, e a validação das regras ao longo do tempo. E que tem isto que ver com maçonaria, perguntareis? Tudo! Um maçon é um homem tendencialmente esclarecido e completo, e distinguir estes dois conceitos - correlação e causalidade - é essencial para a compreensão de muitos argumentos, e para o desmontar de muitas falácias e desonestidades intelectuais que tolhem e limitam a nossa capacidade de escolha - pois que, só na medida directa em que estamos de posse da verdade, é que podemos verdadeiramente agir com liberdade.

Paulo M.

19 julho 2010

A liberdade absoluta



O Diogo, leitor assíduo deste blogue - a julgar pela profusão e extensão dos comentários que cá tem deixado - gosta de "cutucar a onça". Quanto a mim, confesso-me uma "onça altamente cutucável", e gosto de (pelo menos tentar) responder a quem me questiona com sinceridade. Pois seja assim. Irei tentar responder - uma ou duas de cada vez - às questões colocadas nos comentários do último texto.

Paulo - «A Maçonaria proíbe no seu seio toda a discussão ou controvérsia, política ou religiosa… É por isso que, em Maçonaria, se respeita em absoluto a liberdade de expressão de cada um.»
Diogo – Esta frase contém ideias incompatíveis. Não pode existir liberdade de expressão se todo o debate é proibido.

Um dos problemas das palavras é terem tantos significados - e tão diferentes. No site da Infopedia, por exemplo, podemos encontrar vários significados de "discussão", que vão de "análise e troca de ideias sobre um assunto entre duas ou mais pessoas com o objectivo de chegar a um consenso" a "troca de palavras ásperas e por vezes injuriosas, geralmente em voz alta e de modo agressivo; altercação; briga". Parece-me evidente - e de bom senso - que a proibição seja atinente ao segundo significado, e não ao primeiro. Vejamos agora "controvérsia": "discussão sobre um tema ou uma opinião, em que são debatidos argumentos opostos e geralmente acalorados; debate; polémica"; "contestação". Uma vez mais, a questão aqui é o "calor" e os seus efeitos, e não a natureza do que se diz.

É claro que nem todo o debate é proibido; desde que dentro das regras de urbanidade, com respeito pela posição do outro, e com toda a delicadeza, pode discutir-se quase tudo. A proibição - mais do que tricentenária - de debate de assuntos políticos e/ou religiosos decorre da experiência de onde tais debates costumam levar quando os envolvidos residam em campos antagónicos: a palavras acaloradas, menosprezo e desrespeito pela posição do outro (o que pode ser feito de forma muito fria e educada mas não menos ofensiva) e defesas e ataques de parte a parte. No final, o confronto de pontos de vista, longe de permitir o enriquecimento de cada um ou de possibilitar uma posição de consenso, apenas redunda em desconforto, mágoa ou - no pior cenário - mesmo de ideias ainda mais extremadas e repisadas pelo confronto.

Espero que esta rápida análise semântica tenha contribuído para esclarecer o que se pretende, de facto, evitar com esta proibição. Contudo, sei bem que o Diogo não se fica com uma resposta tão superficial. De facto, relegarmos a questão para um mero disagreement linguístico sería risível. O que está em causa é o meu emprego da palavra "absoluto". Poderia eu, para simplificar a coisa, limitar-me a escusar-me, e a retirá-la, dizendo então apenas que "em Maçonaria, se respeita a liberdade de expressão de cada um" em vez de se dizer que se respeita "em absoluto". Todavia, a questão - filosófica - é importante demais para ser deixada cair tão displicentemente - especialmente quando creio que, esta sim, traduz as ideias tão argutamente apontadas como incompatíveis .

A "liberdade absoluta" é um conceito curioso. Para ser absoluta tem que ser universal; não podemos defini-la de acordo com as nossas circunstâncias particulares, mas antes devemos considerá-la enquanto o que desejaríamos que outros (quaisquer outros) fizessem nas nossas circunstâncias. Por outro lado, as nossas decisões devem ser a síntese unificadora das diversas influências e constrangimentos; as nossas ações, se bem que livres, devem refletir os condicionamentos que decorrem da nossa vivência em comunidade. Deste modo, a ética da liberdade absoluta não é absolutamente livre. Para ser livres temos que assumir a responsabilidade de escolher no lugar de Todos, de trabalhar para a liberdade de Todos, e agir no contexto que temos com Todos os demais.

Ou seja: mesmo a liberdade absoluta tem muito pouco do "absoluto" que anteciparíamos. Mais do que um "absoluto", a vida é um permanente compromisso - e aí, na busca de posições relativamente concordantes mais do que absolutamente finais, a Maçonaria tem muito para ensinar.

Paulo M.