29 novembro 2012

Que significa Huzza, Huzza, Huzza?

A pergunta que dá título a este texto, foi a mesma que um I:. da R:.L:.Fernando Pessoa, me colocou há uns tempos atrás, por ocasião da minha primeira visita à sua Loja.

Não lhe soube oferecer resposta alguma, porque, efetivamente não tinha forma de lhe responder, eu, pura e simplesmente não tinha informação suficiente para lhe responder com a assertividade que o momento exigia.

Não considero grave não saber a resposta, seria enquanto maçom, muito mais grave não saber a resposta e ignorar esse desconhecimento, portanto o que havia a fazer era trabalhar para, investir para e por fim, ter aprendido. Pareceu-me um bom móbil para escrever um artigo sobre isso.

E o texto que se segue é o fruto desse trabalho.

Assim:

Huzzé, tem origem hebraica, que pronuncia-se “Huzzá”, há mesmo várias formas de a escrever, desde Uzé, Huzzé, Houzzé e claro está Huzzá. Para os antigos árabes, Huzzá era o nome dado a uma espécie de Acácia, consagrada ao Sol, sendo símbolo da imortalidade, que significaria, “Força e Vigor”.

Exotericamente a palavra é formada por duas sílabas, que constituem a aclamação no seu todo, assim, deve ser pronunciada com voz forte, tratando-se de uma descarga para o nosso organismo e, segundo o dicionário maçónico, ao pronunciar a aclamação estamos a expulsar o “ar impuro”, mandando embora todo o negativismo que carregamos no dia-a-dia profano.

Por outro lado, Huzza! Huzza! Huzza! é uma velha aclamação escocesa que significa “Viva o Rei” e que se pronuncia “Houzé”.

Para Alberto Lantoine, Maçon e Ensaísta Francês, a palavra Huzzá, é apenas sinónimo de Hurra, aclamação vulgarmente conhecida por todos nós como, Hip, Hip, Hurra, mas acrescenta este que, há no inglês o verbo “To Huzza” que quer dizer aclamar, repare-se nas seguintes definições:

“Definition: huzza: “A shout of huzza; a cheer; a hurrah” e Specialty definition:huzza “A shout of joy; a foreign word used in writing only, and most preposterously, as it is never used in practice. The word used in our native word hoora, or hooraw.”.

Para o médico, escritor e historiador, José Castellani, a palavra é francesa, é uma aclamação e não uma exclamação, que seria usada em honra a um acontecimento feliz, quer para a Loja, quer para um I:.. Há quem sugira que a palavra foi adoptada do inglês, pelos maçons franceses, logo em inglês a sua grafia é Huzza e a pronúncia ÚZÊ, em Francês é Huzzé, com uma grafia diferente mas com uma pronúncia muito semelhante, ou seja, UZÊ.

Em hebreu por exemplo, OZA significa “força”, que por extensão significa “VIE”, tal como a palavra “Vivat”.

Nós, maçons portugueses do R:.E:.A:.A:., pronunciamos a aclamação dizendo a palavra com a vogal “a”, aberta: Huzzá! Huzzá! Huzzá!

Claro que as diferenças de pronúncia pouco importam para os maçons, pois na realidade a aclamação é mais um momento de união, que fortalece o espirito de grupo e de família que tão bem nos carateriza, onde cada um está consigo próprio e ao mesmo tempo está com todos os Irmãos. E esta união, este espírito de grupo não é, naturalmente, algo nosso, da Maçonaria, é algo de vários “mundos” e nomeadamente em desportos coletivos, já todos assistimos ao tradicional Haka da equipa de rugby da Nova Zelândia, ainda que seja uma antiga dança do povo Maori, é ao mesmo tempo um grito de incentivo para toda a equipa.

É, não mais que uma forma de potenciar a vontade coletiva do grupo, contando com o melhor desempenho possível a nível individual de cada um dos elementos que o compõem em prol do grupo.

Daniel Martins

Fontes: 

http://pt.scribd.com/doc/509839/DICIONARIO-DA-MACONARIA

http://www.samauma.biz/site/portal/conteudo/opiniao/r009uzze.html

http://www.maconaria.net/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34

http://www.obreirosdeiraja.com.br/huzze/

28 novembro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXX


Após esta conversa, os Mestres, Vigilantes e todos os Irmãos podem conversar livremente, ou entreterem-se juntos, até que o jantar seja servido, devendo cada Irmão tomar o seu lugar à mesa. 

Esta singela Regra aparenta ser desnecessária, ou mesmo sem dignidade suficiente para ser incluída no conjunto das Regras Gerais da Fraternidade. Com efeito, nada de especial, aparentemente, consigna.

Mas se a considerarmos com um pouco mais de atenção, não é tão  inútil ou fútil como aparenta, porquanto, ao inocentemente referir que, entre a reunião preparatória da Assembleia anual e a deliberação sobre a continuidade, ou não, do Grão-Mestre em funções e o Jantar Festivo, a que se seguirá a reunião pública da Grande Loja,  haverá um período de descontração, de convívio livre entre Irmãos, está também a referir o que não se pode fazer! E o que não se pode fazer é prosseguir na discussão ou comentário dos assuntos tratados na reunião preparatória ou relativos à deliberação de recondução, ou não, do Grão-Mestre em exercício.

A Maçonaria, desde a sua transformação na atual vertente especulativa que se assume como um espaço e método de aperfeiçoamento pessoal dos seus membros, incluindo-se neste conceito também a noção de escola e prática de Valores morais e correspondentes e adequados comportamentos sociais.

No seu processo de autoaperfeiçoamento, o maçom necessariamente que tem de olhar para o interior de si mesmo, de se conhecer a si próprio, mas, em simultâneo deve manter presente que o Homem é um animal social, que cada um verdadeiramente é o que é, não apenas em si e por si, mas também enquanto elemento enquadrado socialmente e socialmente interagindo. Por isso o maçom, em bom rigor, não declara ser maçom, afirma que os seus Irmãos como tal o reconhecem. O Homem não é uma ilha, não basta Ser perante si próprio apenas; o seu Ser só adquire pleno significado enquanto ator social.

Esta noção implica que o maçom permanentemente deve agir sobre si perante si, mas também perante todos aqueles com quem se relaciona. Pouco importará se alguém cultiva um coração de ouro, uma exemplar tolerância, se, por outro lado, permanece um intratável bicho-do-mato, incapaz de agir de forma a que os demais possam entrever o seu dourado coração e beneficiar da sua estimável tolerância...

A aquisição destes conceitos e, sobretudo, o adequado trabalho, em equilíbrio, nestas duas vertentes diversas, o Eu perante mim e o Eu perante os outros, não é fácil, não é algo intuitivo, inevitavelmente gera erros, recuos, hesitações, sobretudo na fase inicial de aprendizagem desse trabalho que perpetuamente se deve efetuar. Daí a absoluta necessidade do período de silêncio a que os Aprendizes e Companheiros são sujeitos - e cuja utilidade, por vezes, demora a ser entendida...

Esta singela e aparentemente inútil Regra é um afloramento de princípios de conduta social que são de evidente utilidade, não só para os maçons, como para todos os que se inserem civilizadamente na sociedade: há tempo e lugar adequados para tudo; não se deve misturar o que não deve ser misturado; os assuntos tratam-se nos lugares e momentos próprios para serem tratados.

A preparação das deliberações a assumir na Assembleia Anual tem lugar na reunião prévia. É aí que se tem de discutir o que se tiver de discutir, esclarecer o que houver para esclarecer, opinar o que cada um entenda por bem opinar. Uma vez saídos dessa reunião, não é útil, não é produtivo, não é acertado, não é socialmente adequado, continuar a discutir ou comentar, fora de local, fora de tempo, porventura na presença de quem não teve assento na reunião, os assuntos que a esta dizem respeito.

Esta atenção que os maçons cultivam, no sentido de não tratar os seus assuntos fora do local onde devem ser tratados, do tempo adequado para o fazer e apenas com a presença dos que os devem tratar, é, pelos detratores da Maçonaria, considerada como ultrajante e perigoso sigilo conspirativo. Coitados! Perdoai-lhes, senhores leitores, pois não sabem do que falam, nem sequer se apercebem de que se trata de um puro princípio de boa educação e de prática de conduta social que todos deveriam aprender e praticar desde criancinhas: que há tempos e locais próprios e adequados para tratar de tudo e que falar fora de tempo e do lugar adequado e perante quem não tem nada que ver com o assunto é, além do mais, demonstrativo de falta de educação e de desconhecimento de como as pessoas se devem comportar em Sociedade! Nem sequer se trata de sigilo versus coscuvilhice: é simplesmente boa-educação versus rudeza...

Ora vejam lá onde nos levou uma mais atenta reflexão sobre uma aparentemente insignificante Regra...

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 143. 

Rui Bandeira

21 novembro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXIX


Depois de todos esses assuntos discutidos, o Grão-Mestre e seu Vice Grão-Mestre, os Grandes-Vigilantes, ou seus representantes, o Secretário, o Tesoureiro, os Funcionários, e todas as pessoas, devem retirar-se e deixar só os Mestres e Vigilantes das Lojas para que possam discutir amigavelmente sobre a eleição do novo Grão-Mestre ou a continuidade do atual se não o tiverem feito no dia anterior. Se forem unânimes sobre a continuidade do atual Grão-Mestre, este deverá ser chamado e humildemente convidado a que honre a Fraternidade, dirigindo-a no ano seguinte. Mas só após o jantar será conhecida a decisão, pois tal só pode ser revelado como resultado do ato eleitoral. 

Esta regra regulava a tomada de decisão sobre a continuidade ou substituição do Grão-Mestre em funções. O mandato do Grão-Mestre era anual, podendo haver, sem limite, recondução do titular em exercício.

A regra da duração anual do mandato do Grão-Mestre permanece na maioria, se não na totalidade, das Grandes Lojas dos Estados Unidos da América. Na Europa e na América do Sul, os mandatos têm normalmente uma maior duração, podendo ou não haver recondução do titular e, quando a mesma é possível, podendo ou não haver limite ao número de reconduções possíveis. 

Aquando da fundação da GLLP/GLRP (então apenas GLRP), a duração do mandato  do Grão-Mestre era de cinco anos, sem possibilidade de recondução. Foi essa a duração dos mandatos do Grão-Mestre Fundador, Fernando Teixeira, e do seu sucessor, Luís Nandin de Carvalho. A partir do terceiro Grão-Mestre, a duração do mandato passou para três anos, também sem possibilidade de recondução. Assim se processaram os mandatos dos terceiro e quarto Grão-Mestres, José Manuel Anes e Alberto Trovão do Rosário. À beira do início do mandato do quinto Grão-Mestre, Mário Martin Guia, e muito por persuasão deste, foi alterada de novo a duração do mandato do Grão-Mestre, passando este a ser de dois anos, mas sendo permitida uma recondução. Sempre prudente e cauteloso, entendia Martin Guia - e obteve vencimento nesse seu entendimento - que assim se possibilitava a avaliação do desempenho do Grão-Mestre ao fim de dois anos. Se esse desempenho fosse bom, o mais natural e provável é que fosse reconduzido. Se fosse insatisfatório, seria eleito um outro Grão-Mestre e o abreviado período de exercício de funções com menos felicidade ou acerto não causaria grande mossa ou, pelo menos, causaria menor dano do que se um mandato menos bem conseguido perdurasse por quatro anos. Mário Martin Guia cumpriu assim  um primeiro mandato de dois anos, findos os quais foi reconduzido para um segundo mandato, que abreviaria em alguns meses, por vontade própria. O atual, e sexto, Grão-Mestre, José Moreno, cumpre agora o seu segundo mandato bianual.

Voltando à regra XXIX, é interessante notar como a mesma traduz bem o equilíbrio entre o poder (originário) das Lojas e o poder do Grão-Mestre. Finda a reunião preparatória sob a direção do Grão-Mestre, ele e todos os Grandes Oficiais e, mesmo, os funcionários da Obediência, retiravam-se, ficando a reunião restrita aos representantes das Lojas (Mestres - hoje, Veneráveis Mestres - e Vigilantes). Era nessa configuração restrita, e obviamente livre de pressões e constrangimentos, que era tomada a deliberação de reconduzir, ou não, o Grão-Mestre em exercício. A deliberação de recondução tinha de ser unânime. Era a manifestação do poder originário das Lojas em todo o seu esplendor! Mas, havendo deliberação unânime de recondução do Grão-Mestre em funções, este era chamado e humildemente convidado a que honrasse a Fraternidade, acedendo a dirigi-la por mais um ano. O poder originário das Lojas, uma vez escolhido por estas o dirigente máximo da Obediência, era-lhe de imediato transmitido, ao ponto de a própria solicitação de permanência em funções ser humildemente apresentada e de ser considerada uma honra para a Fraternidade que o Grão-Mestre acedesse a continuar em exercício...

Este extraordinário equilíbrio entre o Poder originário e o Poder delegado ou conferido é uma marca da Maçonaria Especulativa desde o seu início. As Lojas são, e assumem-se como tal, a fonte do Poder na Obediência. Mas, uma vez escolhido um dirigente para a Obediência, e enquanto durar o seu mandato, esse Poder é-lhe transmitido sem reservas, sendo tal evidente no próprio comportamento de absoluto respeito assumido perante o escolhido.

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 143. 

Rui Bandeira

14 novembro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXVIII


Todos os Membros da Grande Loja devem apresentar-se bastante antes do Jantar, incluindo o Grão-Mestre, ou o seu Vice Grão-Mestre, para reunirem, dirigidos por este, a fim de: 
1 - Receber qualquer Apelo devidamente apresentado, como atrás regulamentado, para que o queixoso seja ouvido, e para que o assunto seja amigavelmente decidido antes do jantar, se possível; mas se assim não for possível, deve ser adiado até que o novo Grão-Mestre seja eleito; e se não puder ser decidido após o jantar, a decisão deve ser adiada e o caso entregue a um comité especial, que deve resolver o mesmo em harmonia, relatando o resultado na Reunião Trimestral seguinte; para que o amor fraternal seja preservado. 
2 - Prevenir que qualquer querela ou diferença ocorra nesse Dia; para que nada perturbe a harmonia e o prazer dessa Grande Festa. 
3 - Analisar tudo o que diga respeito à decência e decoro dessa Grande Assembleia, para evitar qualquer indecência, mau comportamento ou promiscuidade. 
4 - Receber e considerar qualquer moção, ou matéria importante e oportuna, trazida pelos representantes das Lojas, ou seja, Mestres e Vigilantes.

No século XVIII, o que ocorria pelo S. João era a Festa Anual dos maçons de Londres e Westminster. O ponto alto, o essencial da mesma, era o Jantar de Confraternização. Antes dele, havia a reunião preparatória do mesmo. Depois dele ocorria então a Grande Assembleia formal.

A reunião preparatória do jantar anual destinava-se, como claramente resulta do texto da regra, a prevenir, tratar e resolver quaisquer pontos de conflito que tivessem surgido ou se previsse que podiam surgir, de forma a que nada ensombrasse a festividade e a preparação da mesma. Só residualmente se previa o tratamento de qualquer questão que fosse colocada pelo representante de qualquer Loja. 

Com efeito, a Festa Anual era isso mesmo, uma festividade. Os assuntos substantivos que devessem ser decididos pela Grande Loja deviam ser, preferentemente, tratados nas assembleias trimestrais.

Presentemente, as formais Assembleias de Grande Loja são essencialmente cerimoniais e festivas, reduzindo-se a atividade administrativa ao mínimo, seja a breve apresentação dos relatórios de atividade, seja a ratificação de deliberações tomadas na sessão administrativa. Para tanto, em regra as Sessões de Assembleia de Grande Loja formais são precedidas de assembleias administrativas, onde têm assento os representantes das Lojas, que, sem formalismos rituais, analisam os assuntos pendentes e tomam as deliberações pertinentes. 

Na GLLP/GLRP é também habitual fazer-se preceder as assembleias administrativas de uma sessão do Conselho dos Veneráveis, onde têm assento os Veneráveis Mestres de todas as Lojas e que, como o próprio nome indica, tem competências consultivas do Grão-Mestre. Dessa forma, o Grão-Mestre pode auscultar o sentimento dos Veneráveis Mestres das Lojas e assim preparar a assembleia administrativa tendo em conta esse sentimento, de forma a permitir uma mais rápida e eficaz deliberação dos assuntos da agenda.

Após a sessão formal de Grande Loja, por regra segue-se um ágape, sempre branco e em honra das Senhoras.

Não sendo uma regra, há a tendência de as Assembleias de Grande Loja dos solstícios terem um pendor mais cerimonial e festivo e as dos equinócios serem mais dedicadas á resolução das questões administrativas.
 
As sessões formais de Grande Loja efetuam-se em ritual de Grande Loja, sendo admitidos a participar nelas todos os maçons da Obediência, incluindo os Aprendizes e Companheiros, além dos Visitantes de outras Grandes Lojas e Grandes Orientes e representantes dos Corpos de Altos Graus. No entanto, essa participação tem essencialmente um caráter de assistência. O uso da palavra é reservado aos representantes das Lojas, aos Grandes Oficiais e aos Visitantes. O direito de voto incumbe exclusivamente aos representantes das lojas.

Mas deve ter-se presente que, se há aspeto em que a diversidade das práticas entre Obediências é mais patente, é precisamente este, da preparação e realização de Assembleias de Grande Loja. Cada Obediência, como entidade maçónica soberana que é, tem as suas regras e práticas, por vezes decorrentes de longa Tradição, que, como é evidente, são totalmente respeitadas pelas demais. Assim, os Visitantes das Grandes Lojas com quem a Obediência mantém relações fraternais, comportam-se segundo as indicações que resultam da prática da Obediência visitada.

Num aspeto, porém, verifica-se uma tendência para a homogeneidade: a entrada ritual dos Visitantes, quando ela se processe. Por regra, os Grandes Oficiais das Obediências com quem se mantém relações fraternais dão entrada na sala da sessão por ordem inversa da antiguidade da Obediência, sendo, portanto, sempre o representante da Grande Loja Unida de Inglaterra, quando presente, o último a entrar.

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 143. 


Rui Bandeira

07 novembro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXVII

Os Grandes Vigilantes, ou os seus Ajudantes, deverão nomear, antecipadamente, um certo número de Irmãos para servir à mesa, de acordo com que achem necessário para a execução de tal tarefa; se desejarem poderão aconselhar-se com os Mestres e Vigilantes das Lojas, sobre quais as pessoas mais capazes para tal função, e seguir as suas recomendações, mas só podem ser maçons livres e aceites, para que nesse dia a reunião seja livre e harmoniosa.

A regra XXVII insere-se num conjunto de regras que regulavam a Festa Anual dos maçons de Londres e Westminster que tinha lugar pelo S. João. No ágape integrado nessa festa apenas podiam participar maçons. Daí a necessidade de providenciar quem efetuasse o serviço de mesa, já que as vitualhas e bebidas não se movimentam sozinhas e, na época, ainda não  se praticava o conceito de repasto em self service...

Ainda hoje, nos ágapes formais, onde apenas estão presentes maçons, se procede de forma semelhante, sendo a tarefa de transportar e servir os alimentos e bebidas efetuada pelos Aprendizes da Loja, incluindo para eles próprios. Os demais comensais, Companheiros e Mestres, aguardam que os aprendizes, terminada a sua tarefa e também eles próprios já servidos, tomem o seu lugar na mesa para, então e só então, começarem a consumir os alimentos.

Desde o início da maçonaria Especulativa que é dada grande importância ao ágape anexo ás sessões, porquanto é um momento privilegiado para convívio e estabelecimento de laços fraternais. Os Aprendizes e Companheiros, que em sessão de Loja têm que respeitar a regra do silêncio, podem e devem no ágape esclarecer as suas dúvidas e emitir as suas opiniões. 

Os ágapes podem ser formais, com execução de um ritual de ágape que é tão exigente e demorado como o ritual de Loja (hoje em dia, apenas em ocasiões especiais assim se procede), normal, com um formalismo aligeirado, ou branco, aberto à participação das senhoras, familiares e amigos, sem qualquer formalismo, a não ser, quando assim se entender, a execução dos brindes rituais.

Os brindes, nos ritos ingleses, são livres (e, por vezes, muitos...). No Rito Escocês Antigo e Aceite, executam-se sete brindes rituais, podendo, após os mesmos, serem propostos brindes livres.

Os sete brindes rituais, em ágapes em que estejam presentes Grandes Oficiais em funções (não quando obreiros da Loja que sejam Grandes Oficiais estejam presentes , mas não nessa qualidade, apenas como normais da Loja, nem quando visitantes efetuem a visita a título pessoal e não como Grandes Oficiais) são os seguintes, em Portugal:

1. A Sua Excelência o Presidente da República (referindo-se o nome de quem, no momento, exerce a função).
2. A todos os Soberanos e Chefes de Estado que protegem a Maçonaria (isto é, de todos os países em que é legal e licita a prática da Maçonaria, pois a única proteção que a Maçonaria reclama dos poderes públicos é a da Lei).
3. Ao Muito Respeitável Gão-Mestre.
4. Aos Grandes Oficiais.
5. Ao Venerável Mestre.
6. Às Senhoras.
7. A todos os maçons.

Quando não estiverem presentes Grandes Oficiais em funções, mas participarem visitantes no ágape, o quarto brinde é dedicado ao Venerável Mestre da Loja e o quinto aos visitantes. Quando nem Grande Oficiais em funções nem visitantes participem no ágape, o quarto brinde é dedicado ao Venerável Mestre e o quinto aos Oficiais da Loja.

Com exceção dos dois últimos brindes, a resposta ao brinde é dada pelos maçons presentes, de pé, empunhando as suas taças e proferindo, antes de beberem um pouco: Fogo!

O brinde dedicado às senhoras é também respondido por todos de pé, mas com as palavras: Às senhoras!  

Especial significado e beleza tem o último brinde, dedicado a todos os maçons, cujo texto (podendo haver variantes, mas sempre com o mesmo objeto essencial) é: A todos os maçons que se encontrem longe de suas casas, ou afastados dos seus, em sofrimento, ou em viagem, na terra, no ar, ou no mar, desejamos-lhes um pronto restabelecimento, e o seu regresso a casa, se assim o desejarem.

A resposta ao brinde é efetuada, por todos os maçons presentes, sempre de pé e empunham as suas taças, proferindo em uníssono: A todos os maçons!.

Este brinde é realizado pelo Aprendiz mais recente que estiver presente, que se coloca de pé imediatamente por detrás do Venerável Mestre (ou do Grão-Mestre, se for este a presidir ao ágape), coloca a sua mão esquerda no ombro direito daquele, ergue a sua taça e profere então as palavras acima transcritas, ou similares.

O Venerável Mestre, ou o Grão-Mestre, pode retribuir este brinde. Levanta-se, vira-se de frente para o Aprendiz, estando este com a taça erguida, toca-a com a sua, e diz: Meu irmão, eu não sou mais que tu; de seguida tocam-se outra vez as taças, e declara: Meu irmão, tu não és menos do que eu; depois, pela terceira vez, tocam-se as taças, e profere: Meu irmão, tu e eu somos iguais: bebamos juntos. De seguida, entrelaçam os braços e bebem simultaneamente. Os maçons presentes saúdam este final com uma salva de palmas.

Que melhor encerramento dos brindes rituais podia haver?

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, páginas 142-143.

Rui Bandeira

31 outubro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXVI

O Grão-Mestre deve escolher dois ou mais Irmãos de confiança para Porteiros, ou guardadores das portas, os quais devem também apresentar-se cedo no local, por óbvias e evidentes razões, e estarão às ordens do Comité.

Esta Regra - que, recorde-se, figura entre o conjunto de regras relativas à organização da reunião festiva anual da Grande Loja de Londres e Westminster, no primeiro quartel do século XVIII - contém referência a ofício que permanece em todas as Lojas maçónicas, de vários ritos: Guarda Interno  ou a dicotomia Guarda Interno e Guarda Externo.

O Guarda Interno é o ofício mais "modesto" da Loja. Tem uma muito breve intervenção no ritual de abertura dos trabalhos e, para além dela, apenas intervém sempre que se torna necessário que alguém entre ou saia da sala onde decorrer a reunião, abrindo e fechando a porta. Não admira que, familiarmente, seja, por vezes referido como o "Oficial Porteiro"...  Porventura quando, descontraída e jocosamente, se faz esta referência, não se tem a noção de que... essa mesma foi a designação escolhida pelas Regras Gerais dos Maçons consignadas na Constituição de Anderson de 1723!

O facto de este ofício ser o mais "modesto", o último na hierarquia de ofícios da Loja, não é, porém, sinónimo de menor importância ou de que seja menosprezado pelos maçons. Pelo contrário, como em quase tudo o que é feito em Loja, os maçons frequentemente aproveitam para conferir uma carga simbólica a esse ofício. Assim, é corrente que o exercício desse ofício seja assegurado durante um ano maçónico por aquele que, no ano anterior, foi o Ex-Venerável da Loja e, dois anos antes, dirigira a mesma, sentado na Cadeira de Salomão. Aquele que dirigiu a Loja, findo esse seu trabalho, coloca a sua experiência à disposição do seu sucessor, sentando-se, como Ex-Venerável, ao lado deste, disponível para lhe prestar o seu conselho, sempre que necessário. Quando, por sua vez, o seu sucessor termina o seu período de exercício do ofício de Venerável Mestre e é ele que assume as funções de Ex-Venerável, aquele que dirigiu a Loja e que depois aconselhou o seu sucessor... vai exercer o ofício mais modesto, menos exigente, menos "importante", da Loja. 

Com este hábito, procuram os maçons simbolizar várias coisas: (1) que todos os ofícios em Loja são importantes e que o funcionamento harmonioso da Loja depende da conjugação de todos eles, pelo que se reserva o exercício do ofício menos exigente para aquele que, durante dois anos, exerceu sucessivamente, os dois mais "nobres" ofícios da Loja; (2) que o trabalho bem feito é importante e compensador, independentemente da sua "nobreza" ou da sua hierarquia, podendo e devendo aqueles que exerceram as mais exigentes funções assegurar, com o mesmo interesse, pundonor e dedicação, funções tidas como mais humildes ou menos importantes, sem que isso diminua - pelo contrário! - a importância que os seus pares lhe reconhecem. Para todos os efeitos, o Guarda Interno é um ofício singelo, exercido por um... Antigo Venerável; (3) sic transit gloria mundi (assim passa a glória do mundo): o maçom sabe que a liderança, o "poder", a "importância" são passageiros, que o exercício de ofício em que se dirige é apenas temporário e que, terminado esse ciclo, outras tarefas o aguardam.

Numa Loja bem organizada, esta evolução do ofício mais exigente para o mais modesto revela-se também uma saudável forma de lidar com a evolução da vida maçónica. O maçom é iniciado, faz o seu percurso de Aprendiz e Companheiro, chega a jovem Mestre, progressivamente vê serem-lhe confiadas responsabilidades, primeiro transitoriamente, em substituição de oficiais impedidos, depois pontualmente, em tarefas determinadas e organizações específicas da Loja, em seguida mais permanentemente, com o exercício, como titular, de sucessivos ofícios, em preparação para o culminar da sua tarefa em Loja: dirigi-la como Venerável Mestre. Atingido o cume da colina, há que saber descê-la. Sai-se da liderança para o aconselhamento do sucessor. Depois de vários anos de dedicação e esforço, exerce-se seguidamente, como Guarda Interno, um ofício menos exigente, quase que como um descanso ativo, em transição para a dissolução no conjunto das colunas. A sua tarefa na administração da Loja ficou completa, agora há que apenas manter disponível a sua experiência para auxílio e benefício dos mais novos, tal como anteriormente se beneficiou do apoio dos mais antigos. A Loja, na sua perpétua evolução, é dirigida já pela geração seguinte de iniciados, que prepara a que lhe sucederá, e assim sucessivamente. Os mais antigos asseguram a sua tarefa de depositários da Tradição e da História da Loja, contribuindo para a manutenção da sua identidade, sem prejudicar a sua renovação. E só intervêm quando solicitados ou em episódica dificuldade, para ajudar a que a Loja prossiga, sem sobressaltos de maior, o seu percurso. O ofício de charneira entre os períodos de formação e de direção, por um lado, e o período de disponibilidade e aconselhamento dos mais novos é, precisamente o tal ofício menos "importante", menos exigente, de Guarda Interno. Quem porventura considere de menor valia e interesse este ofício, é melhor pensar de novo e pensar melhor!

Há ritos maçónicos que têm apenas o ofício de Guarda Interno (Rito Escocês Antigo e Aceite, por exemplo) e ritos que dispõem de Guarda Interno e Guarda Externo (Rito de Emulação, por exemplo; e, de forma geral, os ritos de origem britânica). O ritual original da Grande Loja de Londres e Westminster previa dois Guardas (ou mais, nomeadamente dependendo do número de portas de acesso à sala de reunião).

Esta diferença tem a ver com duas simbolicamente diferentes conceções de um valor que é caro à Maçonaria: a Paz!

Não nos esqueçamos que a Maçonaria Especulativa evolui da sua antecessora Maçonaria Operativa numa época marcada por sucessivas guerras civis em Inglaterra (Lealistas contra Parlamentaristas, Católicos contra Anglicanos, Stuarts contra Hannovers) enfim um período turbulento - e violento - na sociedade britânica. As Lojas maçónicas eram oásis de paz, de concórdia, nesses tempos difíceis, em que adversários políticos, por vezes adversários nos campos de batalha, ali punham de lado as suas divergências e confraternizavam como Irmãos que eram. Porventura desavindos, mas irmãos... Os rituais ingleses dispunham assim que o Templo, a sala de reuniões, sendo um lugar de paz e de concórdia, devia estar livre de armas. O Guarda Interno, o Guarda que estava do lado interior da porta de acesso, estava, assim, desarmado. Mas era necessário garantir a segurança dos que se reuniam e vedar o acesso a quem não tinha lugar nessas reuniões (não nos esqueçamos que, em tempos de conflito, confraternizar com opositores ou inimigos, não era propriamente bem visto...). Portanto, do lado exterior da sala tinha que existir pelo menos um homem armado, para o que desse e viesse, o Guarda Externo, esse, sim, então armado da sua espada - e que nunca entraria na sala de reunião com ela.

Já o Rito Escocês Antigo e Aceite e os ritos dele derivados ou por ele influenciados partem do princípio de que não são as armas que atentam contra a paz e a concórdia: é o uso que delas se faz que pode atentar contra as mesmas. As armas podem ser necessárias e úteis para prevenir ataques e conflitos, para defender valores. Assim, a presença de armas - espadas - no interior do Templo, da sala de reunião, não é interdita. Mais: vários oficiais usam-nas nos seu ofícios: o Venerável Mestre tem uma espada que é um dos símbolos do poder de que está investido e empunha-a em vários significativos momentos rituais. O Experto e o Guarda Interno usam espadas. Momentos rituais existem em que todos os elementos da Loja devem empunhar espadas, não em homenagem ao belicismo mas, pelo contrário, em defesa da Paz e dos valores humanistas. 

Ainda hoje, nas Lojas que, como a Loja Mestre Affonso Domingues, trabalham no Rito Escocês Antigo e Aceite, regular e rotineiramente se usam espadas. Mas, para que não haja equívocos, as espadas que hoje se usam são meramente cerimoniais, isto é, de lâminas rombas, que nada cortam, a não ser, porventura, manteiga desde que esteja temperatura de verão... É que o tempo dos espadachins já passou, o Diabo tece-as, prevenir é melhor que remediar e não queremos que ninguém se aleije... 


Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 142.

Rui Bandeira

24 outubro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXV

Os Mestres das Lojas devem, cada um, nomear um Companheiro de sua Loja, discreto e experiente, para formar um Comité, constituído por um Companheiro de cada Loja, com a incumbência de receber, em lugar conveniente, qualquer pessoa convidada para admissão, o qual tem poder para o informar, se o acharem merecedor para ser admitido, ou barrarem-lhe a entrada se tiver razões para isso; mas não excluirão ninguém antes de explicarem, a todos os Irmãos, em Loja, quais essas razões, para que se evitem erros. E que nenhum verdadeiro Irmão seja excluído, nem um falso Irmão, ou embusteiro, seja admitido. Este Comité deve reunir-se no local da Festa de São João, antes do seu início e antes que qualquer pessoa chegue com o convite (para ser admitido).

 Esta regra postula o que podemos considerar a origem do telhamento, ou seja, o exame das credenciais de quem, sendo desconhecido da Loja (visitante), pretende participar de uma reunião maçónica.

As sessões das Lojas maçónicas são reservadas aos maçons. Por outro lado, a Maçonaria organiza-se em graus (Aprendiz, Companheiro e Mestre), sendo que os maçons de grau inferior não podem participar de reuniões destinadas aos de grau superior. Apresentando-se um desconhecido para participar de uma reunião de Loja, é necessário que esta se assegure, em primeiro lugar, se quem se apresenta para tal é maçom e, em segundo lugar, se é maçom do grau em que a Loja vai trabalhar, ou superior.

O conjunto de operações e verificações destinado a que essa certeza seja adquirida designa-se por "telhamento", o ato de "telhar". A expressão é simbólica. As Lojas maçónicas reúnem "a coberto", isto é, em privado, sem a presença de quem não é maçom. A simbologia utilizada pela Maçonaria é extraída da construção. Um edifício normalmente é coberto com telha. Um edfício com telhado está a coberto. Logo, uma Loja "a coberto" é uma Loja dotada de telhado, uma Loja "telhada". O ato de verificar que quem acede a uma reunião de uma Loja tem o direito de o fazer é o ato de garantir que a Loja reúna efetivamente "a coberto", é o ato de "cobrir" a Loja. Fazendo-se o paraleo com a cobertura de um edifício, cobrir um edifício é dotá-lo de telha, telhá-lo. Logo, o ato de garantir que a Loja reúna a coberto, mediante a verificação de que quem se apresenta é maçom, e maçom do grau em que a Loja vai reunir, é o ato de telhamento da Loja e essa atividade de verificação é chamada de "telhar" aquele que pretende visitar a Loja.

Esta designação é pacífica e comum na Maçonaria Portuguesa.

Já no Brasil, existem duas variantes para a designação. Uma parte das Lojas, em regra as subordinadas ao Grande Oriente do Brasil, utiliza "telhar" e "telhamento". Outra parte, em regra Lojas jurisdicionadas às Grandes Lojas dos vários Estados brasileiros, utiliza os termos "trolhar" e "trolhamento". Tenho este últimos termos por corruptelas dos termos originais, decorrentes de particular entendimento da fonética das palavras originais, tais como são pronunciadas no "português europeu". Com efeito, a forma de pronúncia utilizada no português europeu é consideravelmente mais fechada, mais "muda" na pronúncia das vogais não tónicas. Enquanto que no português do Brasil a vogal "e" de telhar é claramente pronunciada, no português europeu é completamente muda. Não admira, assim, que um ouvido brasileiro confundisse a sílaba "te" de telhar e telhamento, em que a vogal, pura e simplesmente é abafada, é completamente átona, com a a sílaba "tro" de "trolhar", ato de passar a trolha (que até é um instrumento de pedreiro...), daí derivando "trolhamento".

Um ilustre Irmão brasileiro, Kennio Ismail, defende, no blogue "No esquadro" (em http://www.noesquadro.com.br/2011/02/telhamento-ou-trolhamento.html) que o correto é utilizar "trolhar" e "trolhamento", argumentando, designadamente:

Consultando o Dicionário Priberiam da Língua Portuguesa (dicionário do chamado “português europeu”, visto que o REAA praticado no Brasil tem suas raízes na França e em Portugal, com muitos maçons brasileiros do século XIX tendo iniciado na Maçonaria quando dos estudos em Lisboa), encontramos, entre alguns poucos, o seguinte significado para a palavra “trolha”: “operário que assenta e conserta telhados”. Sendo assim, no bom e velho português, “trolhamento” é assentar e consertar telhados. Já o termo “telhador” significa no mesmo dicionário “aquele que telha”, e o verbo “telhar” significa “cobrir com telha”.
Sim, é exatamente isso que você pensou: se você mora em Lisboa e está com uma goteira em casa, você chama “o trolha” pra consertar seu telhado. Ele faz um “trolhamento”, ou seja, um exame para verificar onde está o problema, e então realiza o conserto.
Dessa forma, pode-se entender que “telhamento” é fazer um telhado, enquanto que “trolhamento” é consertar um telhado. Ora, o templo já está concluído. O examinador apenas verificará se não há uma “telha” fora do lugar ou defeituosa, de forma a evitar uma “goteira”. Então, qual é o termo que melhor se encaixa à ação do examinador? Trolhamento. O examinador está sendo um “trolha”, assentando, ou seja, avaliando se os visitantes têm o nível (grau) necessário para participarem dos trabalhos, e impedindo assim a entrada de “uma goteira” em nosso lar maçônico.

O argumento é interessante, mas, a meu ver, não colhe, por várias razões:

1) O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa é um recente dicionário eletrónico, criado por uma empresa comercial que, embora meritório, não tem a autoridade bastante para, por si só, definir o que é certo ou errado na língua portuguesa;

2) Em mais nenhum outro dicionário que consultei, inclusive do século XIX, encontrei o entendimento de "trolha" como operário que assenta e conserta telhados;

3) Em português europeu "trolha" é pedreiro ou servente de pedreiro (e também a designação de uma ferramenta do pedreiro, a colher de pedreiro), e ponto final;  nem no século XIX, quando "muitos maçons brasileiros" estudaram e foram iniciados em Lisboa trolha era designação específica de quem consertava telhados;

4) É certo que o pedreiro trabalha em todas as fases da construção, desde executar os caboucos a levantar paredes, fazer lajes e, sim, também assentar o telhado - mas tudo isso são partes da função do pedreiro, do mister do trolha: não é correto individualizar uma particular tarefa (se o fosse, então ao trolha também cabe abrir janelas, por onde estranhos podem espreitar para o interior das Lojas...);

5) Finalmente, nunca, em português arcaico ou nos rituais e catecismos em uso em Portugal nos séculos XIX e XX foi utilizado "trolhar" e "trolhamento", antes e apenas "telhar" e "telhamento".

Tenho assim que, com toda a amizade, discordar do entendimento do Irmão Kennio Ismail.

Mas, por outro lado, algo há ainda a frisar.

Os defensores do uso de "telhar" e "telhamento" acusam quem usa "trolhar" e "trolhamento" de incorreção, frisando que "trolhar", passar a trolha, o ato de alisar uma superfície é bem mais adequado para designar, não a verificação de quem é maçom, mas sim a atividade de conciliar irmãos desavindos, de limar as asperezas entre eles surgidas, aplainar, alisar, os desentendimentos, enfim, obter a concórdia na Loja através do diálogo que esclareça posições, atenue divergências e garanta a tolerância de diferentes posições e entendimentos.

Embora pessoalmente eu adira a esta interpretação simbólica, não quero deixar de expressar que não concordo com a acusação de "incorreção": a língua é uma coisa viva, evolui, por vezes por variantes cultas, talvez a maioria das vezes por variantes populares, por norma precisamente corruptelas de expressões cultas. Se a língua não evoluísse, se não se alterasse, ainda todos falávamos latim... Uma vez que uma expressão ganhe um uso continuado e significativo na língua, passa a integrá-la, quer a sua origem seja "culta" e tida por gramaticalmente correta, quer a sua origem seja "popular" e decorra de corruptela. Penso que é essa precisamente a situação, neste caso concreto: uma evolução da língua portuguesa, no espaço brasileiro, que acabou por consagrar o uso como sinónimos de "telhar" e "trolhar" e "telhamento" e "trolhamento", desde há dezenas de anos. Precisamente porque a língua é viva e extravasa as pretensões de lhe impormos espartilhos, regras e normas, considero que nenhuma das expressões é, hoje, correta ou incorreta: ambas as variantes estão consagradas pelo uso, ambas ganharam a sua alforria na língua portuguesa, ambas podem ser utilizadas no português utilizado no Brasil.

Uma última nota: não se estranhe que o texto da regra refira que o telhamento era feito por Companheiros: em 1723, ainda a Loja tinha apenas Aprendizes e Companheiros (estes os "oficiais", os que já sabiam executar os trabalhos, equivalentes hoje aos Mestres Maçons), sendo a designação de Mestre reservada ao que hoje designamos por Venerável Mestre. Só mais tarde é instituído o sistema de três graus. O que nos recorda que preservação da Tradição não é sinónimo de imobilismo... nem na língua!

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 142.

Rui Bandeira

21 outubro 2012

O saber calar-se



A sessão fora produtiva e algo longa, e todos ansiavam já pelo momento de confraternização que se lhe seguiria. Como é regra, todos os aprendizes e companheiros haviam observado absoluto silêncio durante a sessão, não podendo pedir a palavra nem manifestar-se. Agora que a sessão tinha terminado, falavam aberta e incessantemente de tudo e de nada, uns aqui sobre um pormenor da sessão que não tinham percebido ou sobre o qual queriam saber mais, outros de assuntos mais mundanos, outros ainda auxiliando-se mutuamente na arrumação do templo - que é, precisamente, uma das incumbências dos aprendizes. Seguiu-se o ágape - uma refeição em conjunto - em que todos podem falar. E todos o fazem, e é precisamente o que se pretende.

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Em sessão de loja não se pode falar sem primeiro pedir a palavra, mas não basta pedir, não basta um "com licença" para legitimar que se tome a palavra de imediato; é necessário esperar que quem tenha a palavra termine o que tem a dizer, pedir-se de seguida a palavra com um gesto, e esperar que esta seja concedida por quem dirige a sessão - o Venerável Mestre. E enquando se discute um certo assunto, cada um tem apenas direito a uma única intervenção; não há direito de resposta, não há "esqueci-me disto ou daquilo", e muito menos comentários ao que outro acabou de dizer.

Com estas regras aprende-se a ser objetivo, sucinto e claro no que se pretende dizer; não há oportunidade de se fazer um discurso por sucessivas aproximações, nem "navegação à vista". Cada um diz o que tem a dizer, e escuta serenamente o que os demais tenham para partilhar. No fim, o Venerável Mestre fará uma súmula do que foi dito e, com base na posição de cada um, estabelece a posição da loja. Os aprendizes e os companheiros mantêm-se em silêncio, para aprenderem pelo exemplo como se faz, o que se faz, e o que não deve fazer-se. Uma vez elevados a Mestres, poderão pedir a palavra e manifestar-se, mas nesse momento terão já tido a oportunidade de ver e aprender, durante um par de anos, como é que devem exercer esse direito.

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Um dos mestres presentes estava a contar histórias antigas, e curiosamente um dos aprendizes presentes - homem já maduro - tinha algo a acrescentar a essas histórias. Com naturalidade, interrompeu a palavra a quem falava - "dá-me só um segundo..." - e acrescentou um pormenor, deu uma informação adicional e, rapidamente, devolveu a palavra. O mestre prosseguiu durante alguns minutos, até que foi de novo interrompido pelo mesmo aprendiz - "se me permites, meu irmão..." - e contou mais um pouco daquilo de que se falava, deixando todos interessados com o que contou, logo se desculpando de novo e devolvendo a palavra. Discretamente, alguns dos mestres presentes trocaram olhares e sorriram com bonomia. "Tem tempo, ele há de lá chegar", pareciam dizer entre si.

É bom que um aprendiz ou um companheiro tenham algo a dizer - e que o façam no momento e lugar próprios, como o é um ágape após uma sessão de loja. É precisamente essa a circunstância ideal para que vão aprendendo a fazê-lo da forma que se espera que venham a configurar futuramente em loja, quando já mestres; nesse momento, poderão intervir em sessão com fluidez e harmonia, já cientes da forma como deverão agir.

Estive mesmo para dar uma palavra, no final, ao aprendiz em causa - mas contive-me. Afinal, quando se diz que "em maçonaria tudo se aprende e nada se ensina" pretende-se realçar, precisamente, o respeito pelo tempo e pelo ritmo de cada um, e pela descoberta por cada um do seu caminho e das suas verdades. O aprendiz haveria de ter mais oportunidades para descobrir por si mesmo; afinal, o mesmo tinha sucedido também comigo. De facto, não sem algum pudor, recordei as minhas primeiras intervenções junto dos meus Irmãos - intempestivas, acutilantes, desarmoniosas - e pensei que, se eu fora capaz de (começar a) aprender a calar-me (coisa que continuo a aprender todos os dias), certamente aquele aprendiz teria o direito de o descobrir também por si mesmo.

Paulo M.

17 outubro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXIV

Os Vigilantes e os Ajudantes devem, atempadamente, ouvir as orientações do Grão-Mestre, ou seu Vice Grão-Mestre, acerca do local. Mas se o Sapientíssimo e seu Vice Grão-Mestre estiverem doentes, ou ausentes, devem reunir-se com os Mestres e Vigilantes das Lojas para aconselhamento e ordens; ou então podem tomar o assunto totalmente em suas mãos e fazerem o melhor que puderem. 
Os Grandes Vigilantes e os representantes devem dar conta de todo o dinheiro que recebem e gastam, à Grande Loja, depois do jantar, ou quando a Grande Loja achar ser o melhor momento para tal. 
Se o Grão-Mestre assim desejar, pode, no tempo devido, reunir todos os Mestres e Vigilantes de Loja para consultá-los a respeito da grande festa, e acerca de qualquer emergência ou acidente relativo a esta, que requeira aconselhamento; ou então tomar para si a responsabilidade.


Esta é a segunda de um conjunto de nove regras dedicadas especificamente à organização da Festa Anual. Das trinta e nova Regras Gerais registadas na Constituição de Anderson de 1723, nada mais, nada menos do que nove, mais de um quarto, são dedicadas à determinação dos vários aspetos organizativos da Festa Anual, com um detalhe que surpreende um pouco, mas que demonstra a importância que era atribuída à referida Festa Anual.

No caso desta regra, a mesma acentua que, embora a regra anterior tivesse cometido a responsabilidade da organização da celebração aos Grandes Vigilantes, essa organização deveria respeitar a orientação dada pelo Grão-Mestre ou, por delegação ou impossibilidade deste, pelo Vice Grão-Mestre, designadamente quanto à escolha do local onde a mesma deveria ocorrer.

Chama a atenção o texto desta regra por, creio que pela única vez em toda a Constituição de Anderson de 1723, ser utilizada uma fórmula protocolar para designar o Grão-Mestre: "Sapientíssimo".

Algo que a Maçonaria herdou do século XVIII e que, um pouco por todo o mundo, mesmo nos países onde o trato é mais descontraído, permanece, é a utilização de uma linguagem e forma de trato cerimoniosos - por vezes soando mesmo a arcaísmo...

Repare-se que o obreiro que dirige a Loja não é o Presidente, nem o Diretor, nem sequer o Mestre: é o Venerável Mestre, isto é, aquele que dirige a Loja e é, por isso, merecedor de especial consideração.

Na GLLP/GLRP, os Grandes Oficiais são "Respeitáveis" Irmãos e o Grão-Mestre, naturalmente, é "Muito Respeitável" Grão-Mestre. No Brasil, é costumeiro designar-se um Irmão, protocolarmente, por "Poderoso Irmão", "Valoroso Irmão" ou mesmo "Portentoso Irmão". O Grão-Mestre Geral do Grande Oriente do Brasil é designado por "Soberano Irmão" e o seu Grão-Mestre Geral Adjunto por "Sapientíssimo Irmão" (precisamente a referência honorífica utilizada na Regra XXIV). Em algumas - quiçá em todas - Grandes Lojas Estaduais, o respetivo Grão-Mestre é designado por "Sereníssimo" Grão-Mestre.

Permanece assim bem ancorada nos costumes maçónicos a utilização de uma grandiloquência de linguagem e de tratamento que, se por um lado, soa a quem está de fora algo estranha, arcaica, mesmo desajustada, por outro constitui a marca de uma diferenciação entre duas vertentes da vida, que os maçons reconhecem serem (ainda) distintas: a vida maçónica e a vida no mundo profano. Naquela, marca-se bem o esforço de aperfeiçoamento, de busca de melhoria, de tolerância, de respeito mútuo, de convergência entre a admiração e a amizade. O uso de vocativos cerimoniosos é uma forma de pontuar esse esforço, essa diferença, afinal - não há que temer as palavras - esse elitismo de que os maçons se reclamam. Mas os maçons sabem bem que esses arcaísmos são utilizados entre si, dentro da estrutura maçónica, sendo socialmente tidos por exagerados, desajustados, no mundo profano. 

O tratamento cerimonioso entre os maçons é herdeiro direto das fórmulas usuais de tratamento que vigoravam no século XVIII. Ao preservarem e continuarem a utilizar essas fórmulas, os maçons prestam homenagem aos seus antepassados, guardam e preservam o que era corrente três séculos atrás, sem olvidarem que a vida e a sociedade evoluíram.

O balanço entre a Tradição e a Modernidade é uma das caraterísticas dos maçons. Na linguagem utilizada, no tratamento cerimonioso de que se não prescinde, preservam a Tradição minuciosamente, ao ponto de poderem ser considerados como utilizadores de linguagem e tratamento arcaicos, grandiloquentes, desajustados aos dias de hoje. Porventura levarão a sua preservação a um nível mal-entendido pelos seus contemporâneos. Mas seguramente que essa caraterística os protege de caírem no vício da linguagem vulgar, do "calão", que vai campeando nos dias de hoje um pouco por todo o lado. Ente um e outro dos polos, diz o Povo que no meio está a virtude...

Não se pense, porém, que as designações cerimoniosas que os maçons efetuam entre si são manifestações de vaidade. Nada tem a ver com isso, apenas com a preservação da Tradição e com permanente manifestação de respeito e apreço pelos demais. E, se dúvidas sobre isso existirem, a imagem que escolhi para encimar este texto esclarece o que os maçons pensam da Vaidade... Se há algo de que todos os maçons são bem conscientes é o da essencial Igualdade entre todos, no momento de deixar este mundo. Aí, então, toda a Vaidade termina da mesma forma...


Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 142.

Rui Bandeira

10 outubro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXIII

Se se achar conveniente, e o Grão-Mestre, juntamente com a maioria dos Mestres e os Vigilantes, concordarem em realizar uma grande festividade de acordo com o antigo e salutar costume da Maçonaria, então os Grandes Vigilantes devem cuidar de preparar os convites, selados com o selo do Grão-Mestre, enviá-los, receber o dinheiro das inscrições, comprar os materiais para a festa, encontrar um local conveniente, e tratar de tudo aquilo que for necessário a tal evento. 
Mas para que este trabalho não seja pesado para os dois Grandes Vigilantes, e de modo a que todos os assuntos sejam cuidados segura e diligentemente, o Grão-Mestre, ou seu Vice Grão-Mestre, podem nomear ou indicar um certo número de ajudantes, tantos quantos achar necessários, para actuar em conjunto com os dois Grandes Vigilantes. Tudo o que tenha a ver com a Festividade será decidido entre estes por maioria de votos, excepto quando o Grão-Mestre, ou seu Vice Grão-Mestre, intervenha dando orientações.

Desde o início da Maçonaria Especulativa que é dada muita importância à festividade anual da Fraternidade, a ter lugar por alturas do solstício de verão, no hemisfério norte (de inverno, no hemisfério sul), no ou perto do dia dedicado a São João Batista (24 de junho), um dos dois S. João que a Maçonaria considera seus patronos (o outro é S. João Evangelista, cuja festa litúrgica, curiosamente - mas talvez, afinal, significativamente... - se comemora em 27 de dezembro, cerca do solstício de inverno, no hemisfério norte, e de verão, no hemisfério sul).

Esta celebração anual coincidindo com a festa litúrgica de uma figura do cristianismo, considerada geralmente o precursor e anunciador de Jesus Cristo, mostra bem que, ao contrário do que muitos pensam, a Maçonaria não só tem uma origem teísta, como essa origem esteve intimamente ligada ao cristianismo.

Sobre a origem teísta da Maçonaria recaiu, e muito, a influência do princípio da Tolerância - desde logo religiosa -, que veio a permitir uma evolução no sentido da inclusividade dos crentes de todas as religiões cristãs, primeiro, logo depois, e muito rapidamente, de todas as religiões do Livro (judaísmo e islamismo), seguidamente de todas as religiões e finalmente dos crentes deístas, isto é, dos crentes num Criador, mas não necessariamente integrados numa religião, não necessariamente professando doutrina de religião organizada.

Independentemente da crença de cada um, todos os maçons reconhecem como patronos da Maçonaria os dois S. João, o Batista e o Evangelista. Muitas Obediências mantêm a época solsticial de junho como referência para a sua principal festividade anual.

No caso da GLLP/GLRP, a sua constituição formal data de 29 de junho de 1991, o primeiro sábado após o dia de S. João naquele ano. Também por esse motivo é a época solsticial de junho objeto da sua maior celebração anual.

A regra que ora se comenta instituía como principais responsáveis pela organização dessa celebração os Grandes Vigilantes. Modernamente, a organização da celebração é assegurada pelas Grandes Secretarias, verdadeiro centro nevrálgico administrativo da generalidade das Obediências maçónicas.

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, páginas 141-142.

Rui Bandeira

03 outubro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXII

Todos os Irmãos de todas as Lojas de Londres, Westminster e arredores deverão reunir Anualmente e celebrar em lugar conveniente, no Dia de São João Batista ou no Dia de São João Evangelista, como a Grande Loia ache mais adequado em nova regra; a Grande Loja tem, nos últimos anos, reunido no Dia de São João Batista, mas a maioria dos Mestres e Vigilantes, com o Grão-Mestre, seu Vice Grão-Mestre e Grandes Vigilantes têm de acordar, numa Reunião Trimestral, três meses antes, que a celebração se realizará, bem como uma Reunião Geral de todos os Irmãos. Se o Grão-Mestre ou a Maioria dos Mestres de Loja forem contra, aquela será cancelada nesse ano. 
Mas havendo uma festividade para todos os Irmãos, ou não, ainda assim a Grande Loja deve reunir-se anualmente em lugar conveniente no Dia de São João, ou, se for domingo, no dia seguinte,para escolher cada ano um novo Grão-Mestre, Vice Grão-Mestre e Vigilantes.

Esta regra deriva, claramente, da Maçonaria Operativa. Já no final da Lenda do Ofício, quando esta se refere ao tempo do rei saxão Athelstan, o Glorioso, que reinou entre 924 e 939 e foi considerado o primeiro rei inglês de facto, se refere que o seu alegado filho (uma inconsistência histórica, pois Athelstan não teve filhos) Edwin gostava dos Maçons muito mais do que o seu pai. E era um grande praticante da Geometria; e dedicou-se muito a falar e a confraternizar com Maçons e a aprender a sua ciência; e depois, pelo amor que dedicava aos Maçons e à ciência, ele foi feito Maçom, e obteve do rei seu pai uma carta-patente para realizar todos os anos uma assembleia, onde lhes conviesse, no reino de Inglaterra.

O conjunto dos elementos das Lojas operativas inglesas reunia-se anualmente, para serem dirimidos conflitos e uniformizadas práticas.

Esta prática transmitiu-se para a Maçonaria Especulativa que, formalizada em reunião de quatro Lojas de Londres e Westminster ocorrida no dia de São João Batista  de 1717, manteve o uso da reunião anual de Grande Loja, em regra no dia de São João Batista, ou perto dele.

A regra ainda estipula que essa reunião anual poderia ser no dia de São João Batista (24 de junho) ou no dia de São João Evangelista (27 de dezembro). A aproximação às datas solsticiais é evidente. Com o decorrer do tempo, veio a festividade anual da Maçonaria a fixar-se por volta do solstício de verão, já que as festividades do solstício de inverno acabam por ser absorvidas pelas festividades natalícias nos países maioritariamente cristãos.

Nos tempos operativos e nos primeiros tempos da Grande Loja de Londres e Westminster, a assembleia anual destinava-se a reunir todos os maçons. O grande crescimento da Maçonaria tornou impossível que assim continuasse a suceder, passando a assembleia anual da Grande Loja a ser mais uma das reuniões trimestrais da Assembleia de Grande Loja, formada pelos representantes designados pelas Lojas, apenas com uma maior solenidade e festividade.

A Assembleia anual pelo dia de São João Batista era também a ocasião para a eleição do Grão-Mestre, do Vice Grão-Mestre e dos Grandes Vigilantes. A evolução sofrida pela Maçonaria com a sua expansão pelo mundo veio a alterar significativamente esta regra: em muitas Obediências, o Vice Grão-Mestre e os Grandes Vigilantes deixaram se ser eleitos, passando a ser designados pelo Grão-Mestre (em contrapartida, emergiu a importância de um ofício administrativo que, por razões que parecem evidentes, passou, em muitas Obediências, a ser um ofício preenchido por eleição: o Grande Tesoureiro). Em muitas Obediências, o mandato deixou de ser anual, passando a ter duração variável, entre dois e cinco anos - mas não na generalidade das Obediências norte-americanas, que mantém a duração do mandato de Grão-Mestre como anual. Também a dispersão geográfica, os usos e costumes de cada país, as diversas condições climáticas, enfim, uma multitude de fatores, vieram a originar que a eleição do Grão-Mestre não ocorra necessariamente no solstício de verão.

Mas a Assembleia ocorrida por volta do dia de São João Batista, por volta do solstício de verão no hemisfério norte (de inverno, no hemisfério sul) continua a ser a ocasião mais festiva globalmente na Maçonaria.

Uma tradição comum mas adaptável em função das circunstâncias, dos locais, dos costumes, das necessidades, tem-se revelado uma poderosa força de união dos Maçonaria.

Finalmente, uma outra nota. Os maçons têm como objetivo o seu aperfeiçoamento pessoal, num esforço individual  beneficiando do auxílio e da contribuição do coletivo. É um permanente trabalho de construção, uma incessante e laboriosa tarefa. Mas os maçons também sabem que a Vida não é só composta de esforço, de labuta, de trabalho. Também o descanso, o ócio, os momentos de festa e confraternização, são importantes, quer para restaurar as forças de cada um, quer para fortalecer os laços de amizade, de camaradagem, de fraternidade. Há tempo e lugar para tudo, para o trabalho e para o ócio, para a labuta e para a festa, para o esforço e para a confraternização. Por isso os maçons também estabeleceram e mantiveram regra prevendo a existência da festa para ser em comum fruída.

Os maçons são homens bons que querem tornar-se melhores, mas são, sobretudo, homens! 
 
 Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 141.

Rui Bandeira

01 outubro 2012

Integração e tolerância



Uma adolescente muçulmana de 12 anos de idade, vivendo em Frankfurt, requereu a um tribunal alemão a dispensa das aulas de natação, alegando desconforto em estar tão perto de rapazes em tronco nu. De acordo com o seu advogado, o Corão não só a proibiria de se mostrar aos rapazes como de ver os rapazes despidos da cintura para cima.

Na passada sexta-feira o tribunal  emitiu a sentença, na qual recordou que ela poderia usar um fato de banho de corpo inteiro - já usado, aliás, por outras colegas da mesma escola - o que seria garante suficiente da sua liberdade religiosa. Por outro lado, notou que a família - original de Marrocos - escolhera viver na Alemanha, onde as aulas de natação mistas são a norma. Remeteu, por fim, para uma sentença do tribunal constitucional alemão, de acordo com a qual  um dos propósitos do sistema escolar seria a promoção da integração e da tolerância. Por tudo isto recusou a pretensão da requerente, tendo esta que suportar a vista dos colegas nos seus fatos de banho.

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Por ser a tolerância religiosa um dos valores que estiveram na génese da maçonaria especulativa, é natural que os maçons tenham na tolerância um valor fundamental. No entanto, se perguntarmos a duas dúzias de maçons o que é a tolerância, receberemos duas dúzias de respostas, algumas das quais contraditórias - e é bom que assim seja. A tolerância decorre da diversidade; sem diversidade não há necessidade de tolerância: só faz sentido ser-se tolerante perante o que é diferente de nós.

É natural que procuremos a proximidade daqueles com quem nos identificamos mais, e nessa identidade acabemos por nos afastar dos que não se nos assemelham. A própria origem das espécies decorrerá dessa tendência de agremiação de seres mais semelhantes entre si mas um pouco diferentes de outros, mesmo quando todos partilhem antepassados comuns. O reconhecimento de seres diferentes - porventura portadores de uma mutação genética, ou doentes - e o afastamento dos mesmos poderá servir de  mecanismo de preservação das populações.

Por outro lado, pode dizer-se que a intolerância é um mecanismo de defesa, de repulsão de um ataque - tenha este de facto decorrido, ou esteja iminente, ou seja meramente possível. Neste sentido, é uma qualidade saber-se reconhecer o inimigo que pode destruir-nos a nós ou às nossas crias. Porém, tomar por agressão a própria diferença independentemente dos atos cometidos é um comportamento perfeitamente típico de um ser irracional, se bem que inaceitável num ser humano.

Não deixa, por isso mesmo, de ser desejável que tomemos consciência da dualidade da nossa natureza - animais por um lado, racionais pelo outro - e saibamos tirar o melhor partido de ambas as facetas da mesma. Pois que se, por um lado, o "instinto animal" nos pode salvar de muitas situações perigosas, por outro só uma mente racional nos pode levar até à plenitude da nossa humanidade.

Tolerar a intolerância sob o argumento de que "é natural" só é aceitável para quem esteja disposto a abdicar de tudo quanto desenvolvemos enquanto seres racionais. Aceitar que somos todos diferentes, e que nada de mal tem forçosamente que advir daí, é uma atitude tão mais importante quanto mais populado está o nosso mundo, e quanto mais globalizado e culturalmente miscigenado este se vai inexoravelmente tornando.

Li há anos um livro de Robert Heinlein (já não me recordo de qual...) de que retive uma frase: "Um homem sábio não pode ser insultado, pois a verdade não insulta, e a mentira não merece atenção." Copiei essa frase cuidadosamente para um papelinho que guardei cuidadosamente espetado num painel de cortiça no meu escritório durante anos. 

Curiosamente, o presidente Obama disse há dias uma coisa parecida: que a cultura ocidental reconhece o direito à liberdade de expressão, mas não reconhece o direito a não ser insultado. Nas nossas sociedades - nos chamados "Estados de Direito" - a lei estabelece uma linha mínima de homogeneidade: todos são iguais perante esta, todos devem cumpri-la, e ninguém deve ser forçado a fazer o que esta não preveja. A lei constitui, assim, como que as "regras da casa" de uma sociedade, estipulando o que é e não é aceitável. 

Pode dizer-se que há, essencialmente, duas formas de gerir a diferença: pretender tornar todos iguais, ou aceitar que somos todos diferentes. Se tivermos em conta quer as lições da História, quer o facto de que mesmo na população mais homogénea há diferenças de indivíduo para indivíduo, não nos resta senão aceitar a diferença - e tirar o maior partido desta. Podemos pretender agir sobre os outros - tornando-os iguais a nós mesmos ou suprimindo-os - ou pretender agir sobre nós mesmos - aceitando os outros como são. É esta, precisamente, a forma como vejo a tolerância tal como a maçonaria no-la transmite: como uma  deliberada indiferença perante a diferença. Não, não é instintivo - mas aprende-se.


Paulo M.

26 setembro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXI

Se o Grão-Mestre morrer durante a sua gestão, ou, por doença, por estar além-mar, ou qualquer outro motivo, ficar incapacitado de exercer a sua função, o Vice Grão-Mestre ou, em sua ausência, o  Primeiro Grande Vigilante, ou em sua ausência o Segundo Grande Vigilante, ou em suas ausências, quaisquer três Mestres de Lojas, deverão reunir-se e convocar a Grande Loja imediatamente, para que, juntos, possam analisar esta emergência, e enviarem dois dos membros para convidar o último Grão-Mestre a reocupar o cargo em curso, passando a ocupá-lo; ou se este recusar, então o antepenúltimo, e assim por diante. Mas se nenhum antigo Grão-Mestre for encontrado, então o seu Vice Grão-Mestre deve exercer o cargo, até que outro Grão-Mestre seja escolhido; e se não houver nenhum Vice Grão-Mestre, então o mais antigo Mestre desempenhará essa função.

Esta regra regulava a substituição temporária do Grão-Mestre, por sua morte ou outro impedimento definitivo, até à eleição e instalação de novo Grão-Mestre.

Foi concebida nitidamente com o propósito de prever todas as possibilidades, evitando qualquer vazio de poder e, pela minúcia da sua estatuição, prevenindo conflitos sobre quem temporariamente assegurava os destinos da Fraternidade.

Note-se bem que a regra prevê apenas a forma temporária de substituição do Grão-Mestre falecido ou definitivamente impedido, bem como o objetivo dessa substituição. Não era, pois, aceite a possibilidade de substituição definitiva até ao termo do mandato.

Estatuiu-se uma precisa e detalhada ordem de substituição temporária, que seria assegurada, em primeiro lugar, pelo Vice Grão-Mestre; na falta ou impedimento deste, o encargo seria assumido pelo Primeiro Grande Vigilante; mas, na falta ou impedimento deste, interviria o Segundo Grande Vigilante; na improvável falta ou impedimento de todos estes, avançaria então um coletivo composto por quaisquer três Veneráveis Mestres de Lojas.

Qual a função destes substitutos? Unicamente uma: convocar a Assembleia de Grande Loja (e, logicamente, assegurar a gestão corrente até à realização desta).

Uma vez desaparecido ou impedido o Grão-Mestre eleito pela Grande Loja, era a esta, titular originária dos poderes conferidos - e só a esta - que incumbia resolver o problema. Essa resolução ocorria em dois tempos: num primeiro tempo, assegurar a gestão corrente até à realização da Assembleia de Grande Loja que iria proceder à eleição do novo Grão-Mestre; no segundo, essa mesma eleição.

Porquê esta necessidade de duas Assembleias de Grande Loja, uma para designar um gestor provisório e outra para efetuar a eleição? Porque o processo eleitoral necessariamente que demorava algum tempo, com prazos de apresentação de candidaturas, esclarecimento do corpo eleitoral pelos possíveis vários candidatos, execução das operações materiais inerentes a qualquer eleição séria, e se pretendia que, quer a gestão corrente, durante esse período, quer a própria organização do processo eleitoral decorresse sob a égide de alguém especificamente mandatado para tal, expressamente dotado de poderes e confiança pela origem de toda a autoridade maçónica, a Assembleia de Grande Loja.

A regra indica desde logo quem a Assembleia de Grande Loja deve designar para essa função temporária, um dos Antigos Grão-Mestres, com uma ordem de preferência indo do mais recente para o mais antigo. Só na falta, de todo em todo, de Antigo Grão-Mestre disponível para assegurar o encargo, este seria assumido pelo Vice Grão-Mestre em funções ou, em último caso, pelo Venerável Mestre mais antigo (disponível, subentende-se).

Porquê esta opção em detrimento dos Oficiais em funções? E porquê a necessidade de convocação e realização de uma Assembleia de Grande Loja apenas para designar o titular provisório da função, se a norma é tão detalhada na designação de quem a devia exercer e na ordem de precedência e substituição para o efeito?

Quanto à preferência pelos Antigos Grão-Mestres, resolvia uma questão de confronto de legitimidades. Por um lado, os Grandes Vigilantes eram eleitos, tal como o Grão-Mestre, enquanto que o Vice Grão-Mestre era apenas designado pelo Grão-Mestre; mas, pelo outro, aquele era hierarquicamente a segunda figura da Obediência e da confiança do Grão-Mestre eleito. Já na regra XVI se regulara, cautelosamente, a forma de solucionar possíveis conflitos entre os Grandes Vigilantes e o Vice Grão-Mestre. A solução acolhida evitava e escolha entre a legitimidade decorrente da confiança depositada pelo Grão-Mestre eleito (e falecido ou impedido) e a legitimidade eleitoral dos Grandes Vigilantes, fazendo apelo aos "senadores", aos Antigos Grão-Mestres, que o foram por ter sido eleitos para tal e que tinham já experiência de administração da Grande Loja, podendo assim assegurar facilmente um período transitório de substituição. Só na (improvável) hipótese de não haver um Antigo Grão-Mestre disponível, em nítido último caso, a regra se resigna a escolher, optando pelo Vice Grão-Mestre - com alguma lógica, dado que se trata de solução transitória, para assegurar a continuidade do que se vinha fazendo, até à obtenção da solução definitiva, pela legitimidade eleitoral.

Quanto à necessidade de realização de uma Assembleia de Grande Loja intercalar, a meu ver decorria de dois pressupostos. Por um lado, assegurar a transparência da substituição provisória: a verificação do cumprimento da norma e dos sucessivos requisitos e ordem de substituição era publicamente feita perante a Assembleia. Por outro, conferia-se legitimidade da Assembleia ao gestor provisório.

Modernamente - também porque a evolução das comunicações o propicia -, o sistema é simplificado: o Vice Grão Mestre, ou o Primeiro Vice Grão-Mestre, quando haja mais de um, ou ainda o mais antigo dos Vice Grão-Mestres, assume a condução provisória da Fraternidade até à eleição, cujos termos e processo já estão previamente previstos e regulamentados.

Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 141.

Rui Bandeira

21 setembro 2012

As ondas da fortuna



Um dia, passeando junto ao mar, aproximei-me de uma falésia com as minhas filhas, e mostrei-lhes as ondas revoltosas que fustigavam as rochas. Perguntou-me uma delas sobre aquelas enormes pedras: "Alguém as pôs ali? De onde vieram?". Expliquei-lhe que por debaixo do chão que pisávamos havia terra, areia, pedrinhas pequenas, argilas, e algumas pedras grandes. As ondas do mar e as marés iam corroendo a base da falésia, fazendo desabar partes desta, e dissolvendo depois as partículas menores em areia e em pó. Era daí que vinham as pedras.

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Um maçom tem como principal objetivo tornar-se numa pessoa melhor. É para isso que a maçonaria existe: para tornar homens bons ainda melhores. Melhores não em termos absolutos, mas cada um relativamente melhor do que era antes, aos seus próprios olhos, e em face da sua própria realidade. Os objetivos de cada um, as estratégias de progresso, os critérios de sucesso, a cada um pertencem. É inútil tentarmos quer traçar quer percorrer o caminho do outro; em maçonaria cada um faz o seu próprio caminho. E, quando há vontade e meios, que fantásticos caminhos podemos percorrer!

Que bem nos sentimos quando a vida nos sorri! Nesses momentos sentimo-nos capazes de tudo, sentimo-nos os melhores homens da Terra, e juramos para connosco que estaremos sempre acima das vilezas da vida. Como é bom subir - e estar em cima! Como é gratificante sentirmo-nos bem connosco mesmos! O esforço paga-se a si mesmo, a consciência do progresso redobra-nos as forças, e ganhamos ânimo para sermos ainda melhores, e capazes de tudo.

Porém, tal como nas marés, a cada subida se segue uma descida. Quando a vida se torna mais dura e o sorriso menos espontâneo é, de repente, muito mais difícil manter o rumo ascendente e tornarmo-nos melhores a cada dia que passa. Pelo contrário, tudo ao nosso redor nos puxa para baixo, como o mar nos arrasta para o largo quando a maré desce. E quantas vezes damos por nós a lutar desesperadamente não por nos tornarmos melhores, mas apenas por não nos tornarmos piores!... Os tempos duros não melhoram os indivíduos; no entanto, dão mais realce aos melhores - àqueles que não se deixam levar pelas ondas.

São homens firmes, voluntariosos, obstinados, fazendo finca-pé perante as adversidades, quem serve de facto de apoio aos mais vulneráveis, quem mantém as sociedades coesas, e quem mais contribui para suportar os grandes embates da História. Orgulha-me saber que muitos destes homens foram maçons, que trabalharam integrados nas suas lojas, que nelas cresceram apoiados nos que os precederam, e foram suporte dos que vieram depois. Ser assim mesmo, composta de uns maiores, outros mais argilosos, outros mais ásperos, mas acima de tudo de gente diferente, é o que dá solidez a uma loja.

E saber que seremos todos, no fim, (des)feitos em areia e pó na implacável voragem das ondas, não restando memória das pedras que outrora tenhamos sido, nada ficando a longo prazo de legado ao futuro, tranquiliza-me em certa medida: faz com que cada homem não valha senão por si mesmo, aos seus próprios olhos, e à luz da sua própria consciência.

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Na base da falésia restavam apenas as grandes pedras que o mar não conseguira ainda vencer. Onda após onda, maré após maré, mesmo estas viriam a soçobrar - mas não já. Pois enquanto estas se perfilassem no seu posto, a falésia estaria mais protegida da fúria inconstante do oceano. Sem elas a falésia não existiria. Mesmo quando fossem quebradas ou arrastadas, outras mas novas viriam tomar o seu lugar, vindas mais de cima, ou mais do interior. E quando, por fim, um dia a falésia deixar de existir, o mar, cansado de não ter mais onde bater, espalhará pelas praias do mundo tudo o que dela restou.


Paulo M.

19 setembro 2012

Jorge Silveira (1953-2012), maçom breve

Conheci o Jorge precisamente no dia 23 de novembro de 2011. Foi esse o dia em que o Jorge foi iniciado Aprendiz Maçom na Loja Mestre Affonso Domingues. Antes desse dia, Jorge Manuel Maciel da Silveira fora apenas um nome numa ficha de candidatura lida e aprovada em Loja para prosseguimento do normal processo de candidatura e, depois, o nome da pessoa retratada nos relatórios dos inquiridores que sobre ele se informaram e, tendo concluído tratar-se de um homem livre e de bons costumes, com sincero desejo de se aperfeiçoar, recomendaram a sua admissão às provas da Iniciação.

Nessa noite de inverno, conheci um homem alto e bem constituído, um pouco mais velho do que eu, que realizou as suas provas de Iniciação com naturalidade e que, no convívio que se seguiu no final da sessão (quando não há uma segunda oportunidade para uma boa primeira impressão...) se confirmou um homem calmo, ponderado, com muita vida já vivida, e se revelou, sobretudo, como um homem sorridente. 

É esta a primeira recordação que tenho do Jorge, o sorriso afável que, natural e frequentemente, surgia no seu rosto. Muito cinquentão, já não muito longe das seis décadas de vida, mantinha a capacidade de sorrir, o espírito de humor - descobri mais tarde que uma saudável ironia era frequente expressão dele -, a afabilidade que normalmente encontramos naqueles que estão de bem consigo próprios.

Se a primeira tarefa de um Aprendiz é a da sua integração no grupo, o Jorge efetuou-a com facilidade e distinção. Um par de sessões, um par de convívios, chegou e sobejou para que o Jorge fosse mais um dos nossos. Não havia dúvidas de que era um bom homem, com bom caráter, interessado e de fácil trato. Rapidamente entrou no ritmo: atento nas reuniões, nelas fazia o que se espera que um Aprendiz faça - ouvir, observar, aprender; fora delas, era também o que de melhor havia a esperar - afável, descontraído, participativo, perguntava quando devia perguntar, comentava a propósito, confraternizava com facilidade. Com muita facilidade e rapidez começaram a tecer-se laços de amizade, em especial - e como seria de esperar - com alguns dos Aprendizes com quem partilhava trabalhos, expetativas, esforços.

Na hora de trabalhar, disse-me o Segundo Vigilante, era sério e esforçado e evoluía com rapidez e segurança. Rapidamente atingiu o patamar em que se lhe começava a perguntar se já escolhera o tema da sua prancha de Aprendiz e se incentivava a que a elaborasse e apresentasse. Não haveria qualquer surpresa na sua Passagem a Companheiro, que certamente ocorreria neste ano maçónico de 2012/2013. Como se antevia que, também sem sobressaltos de maior, evoluiria até à sua Elevação a Mestre e se perspetivava que viria a ser um bom Mestre, que bem faria o seu papel na Loja.

Quis o Grande Arquiteto  que assim não viesse a acontecer. Já em setembro, mas ainda antes da primeira sessão do ano, surpreendeu-nos a todos a notícia da sua passagem para o Oriente Eterno. O Jorge já uns dias antes confidenciara a um de nós que algo não ia bem, que uma dor no peito intermitente, mas fugazmente, o incomodava. Infelizmente,o Jorge não deu a atenção que devia ao assunto, não tratou de pôr o seu médico a par da situação com a presteza que era aconselhável e não reconheceu a natureza do sinal que o seu corpo dava. E assim a sua hora de conhecer o Grande Mistério chegou. 

Foi, em menos de um ano, o terceiro obreiro que a Mestre Affonso Domingues viu partir! E, se todos cremos que essa partida é também a entrada numa nova etapa do caminho, isso não torna menos dolorosa a separação: todos os que acenaram a um familiar ou amigo da borda de um cais ou no átrio de um aeroporto o sabem. 

Tivemos a dita de poder conviver com o Jorge durante alguns meses. Ficámos com pena de só termos convivido com o Jorge durante alguns meses. O tempo em que o Jorge integrou a Loja Mestre Affonso Domingues foi breve, mas foi intenso e proveitoso e gratificante.  

O Jorge Silveira foi um maçom breve. Mas - que ninguém o duvide - quando partiu, partiu um dos nossos. 

Rui Bandeira