28 novembro 2010

A pedra bruta



O aprendiz tivera recentemente a sua primeira lição sobre a pedra bruta e a pedra polida. Foi-lhe explicada a base, o essencial, o ponto de partida do significado desses símbolos, que depois interiorizaria e desenvolveria por si mesmo. Aprendeu, então, que a pedra é cada um de nós; que o nosso trabalho consiste em "aparar" as nossas asperezas de modo a atingirmos um estado de maior perfeição - ou de polimento - para que, por fim, juntos, formemos essa sublime construção, esse supremo templo que o Homem edifica, a partir de si mesmo, à Glória do seu Criador.

Várias noites seguidas o aprendiz adormeceu sobre o assunto, e sonhou com pedras de todos os feitios. Sonhou com enormes e antigos rochedos cobertos de um musgo ancestral; sonhou com areia fina, outrora parte de imponentes escarpas e agora reduzida a pó; sonhou com mós de moinho, com as pedras dos muros das aldeias da sua infância, com a calçada da cidade, com esquinas de prédios, com gravilha, com os seixos rolados que lançava fora quando abria um buraco no quintal e cuja forma traía um longo percurso de leito de rio e de enxurradas de Outono.

Num dos seus sonhos, o seu olhar recaiu sobre um calhau quase em bruto, semi-enterrado, com um dos lados mais plano - o mais batido pela intempérie - e o resto, por ter passado a maior parte do tempo oculto debaixo da terra, ainda cheio de rugosidades e imperfeições. Algo de familiar lhe chamara a atenção para com aquela pedra, pelo que a fixou com atenção. Logo acordou, mas aquele calhau, mais áspero de uns lados, mais liso de outro, não lhe saía da cabeça.

Só dias depois, ao fazer uma introspeção sobre as suas fraquezas e as suas forças, se reconheceu, não sem algum embaraço, na pedra com que sonhara. O seu lado mais polido - aquele, afinal, em que mais tempo investira, e que era aquele que lhe punha o pão na mesa - estava, não obstante, rachado e eivado de sulcos aqui, mas ali ainda com sinais de pouco trabalho e pouca perseverança que traíam a rugosidade original. Do resto nem valia a pena falar; precisava de tudo.

Inspirou fundo e quase desistiu; a tarefa era árdua, e não sabia sequer por onde começá-la. Apercebeu-se, então, que nem sequer sabia onde queria chegar, pelo que não fazia sentido meter-se, antes disso, ao caminho. O que deveria fazer dessa pedra que era ele mesmo?

Inquieto, procurou junto de um dos seus Mestres orientações quanto ao que deveria fazer. Este, à guisa de resposta, mostrou-lhe dois muros, igualmente sólidos e compactos: um, formado por pedras de forma paralelepipédica, cada um com as suas 6 faces laboriosamente aparadas; outro, formado por pedras irregulares mas firmemente encaixadas umas nas outras, em que apenas uma ou duas faces - as exteriores - tinham sido polidas, mas essas, oh, como brilhavam!

Mais baralhado ainda, perguntou ao Mestre que pedra deveria ser, e o que deveria fazer para o atingir. Deveria ir aparando, nas várias faces, as rugosidades maiores, esperando que, ao fim de muitas passagens, a forma se fosse compondo? Ou deveria investir numa ou duas das faces e ignorar as restantes? Ou, pelo contrário, deveria trabalhar todas, mas dando forte preponderância a uma ou duas, e limitando-se a atingir os mínimos nas remanescentes?
Respondeu-lhe o Mestre que não tinha resposta para lhe dar. Que cada um deveria aparelhar a sua pedra da forma que entendesse ser a mais perfeita, e que o Grande Arquiteto saberia usá-la, como ficasse, na construção do Templo. Umas, mais toscas, seriam usadas como enchimento, sem o qual as paredes não teriam consistência para se suster; outras, mais ornamentadas, seriam colocadas em lugar de destaque, mas seriam eventualmente mais frágeis; outras ainda, robustas e fortes, aparadas de forma milimétrica mas sem quaisquer adornos, tornar-se-iam nas pedras que susteriam os vãos e as abóbadas. Algumas pedras, pela sua própria natureza, nunca poderiam servir para certos fins; mas todas conseguiriam tornar-se úteis para alguma coisa, e tanto mais úteis quanto mais trabalho tivesse sido despendido nas mesmas.

O Aprendiz olhou então, longamente, a sua pedra, inspecionou minuciosamente a face mais polida - mas imperfeita - bem como as outras, rugosas e ásperas, e lançou-se ao trabalho.

.·.

Anos mais tarde, já o Aprendiz chegara, por sua vez, a Mestre, tendo a oportunidade de ir apreciando os trabalhos dos Aprendizes e Companheiros da sua Loja, e o quanto eram diferentes uns dos outros. Enquanto uns se esforçavam mais por distribuir o seu esforço por várias faces - obtendo belas peças geométricas que formavam um todo harmonioso, em que nenhuma face sobressaía das demais - outros persistiam em trabalhar a mesma face até que esta brilhasse como um espelho, ofuscando as imperfeições que haviam ficado por trabalhar nas restantes, e que podiam, mesmo, ser vistas como uma promessa de aperfeiçoamento futuro. Em todas elas o Mestre teve oportunidade de aprender algo de novo. E apercebeu-se, então, de que o seu  Mestre tivera razão, pois que de nenhuma poderia dizer, com segurança, que fosse melhor do que as outras.

Paulo M.

24 novembro 2010

O Orador


O Orador é o guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos em Loja, pela Loja e pelos obreiros da Loja. Integra, com o Venerável Mestre e o 1.º Vigilante, a Comissão de Justiça da Loja. É o único obreiro que pode interromper qualquer outro obreiro, incluindo o Venerável Mestre, quando se lhe afigure necessário para assegurar o cumprimento dos princípios, leis ou regulamentos maçónicos. Não admira, assim, que a medalha do Orador seja constituída por uma imagem das Tábuas da Lei.

O Orador é um ofício específico do Rito Escocês Antigo e Aceite, que não deve ser confundido, por exemplo, com o ofício de Capelão em outros ritos. Com efeito, o Orador é o oficial da Loja que tem, além da anteriormente referida, a função ritual de proferir Orações. Mas isso não quer dizer Preces... A Oração proferida por este Oficial da Loja é de outra natureza: o Orador tira, de cada debate, as suas conclusões e nisso deve consistir a Oração final (no sentido de "intervenção oral") que lhe compete produzir. Assim, compete ao Orador, no final de cada debate, resumir e organizar as várias posições que tenham sido expostas e, em função das mesmas dar o seu parecer ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar e a forma como deve ser tomada.

Recorde-se que o debate em Loja processa-se segundo regras rígidas, tendentes a possibilitar a livre expressão da opinião de cada um, sem constrangimentos nem perturbações. Importa a substância do que é transmitido, não a sua forma. Debate-se, no sentido de se analisar uma questão e tomar uma decisão; não se discute para procurar fazer valer a sua opinião, para levar de vencida opositores (pois em Loja não há opositores, apenas Irmãos que cooperam) ou rebater argumentos. Em Loja, o debate estabelece-se sempre relativamente a uma questão concreta, em relação à qual cada Mestre deve proceder à sua análise, dar a sua opinião, apresentar o seu entendimento da melhor forma de proceder. Cada Mestre intervém uma e só uma vez em cada debate. Não se interrompe ninguém (o único que pode fazê-lo, e unicamente para salvaguarda dos usos e costumes, leis e regulamentos maçónicos é precisamente o Orador - e esta situação só raramente ocorre). Cada Mestre só inicia a sua intervenção após estar terminada a intervenção anterior e depois de devidamente autorizado a fazê-lo pelo Venerável Mestre. Em caso algum se estabelece diálogo: cada Mestre fala para toda a Loja, não para uma pessoa em particular. Cada um dá a sua opinião sobre o tema, não gasta o seu latim e a paciência dos demais a refutar ou criticar outras opiniões anteriormente expressas: a assembleia é composta de homens inteligentes, que facilmente podem discernir que se A entende branco e B amarelo, B não concorda com A e tem uma opinião diversa dele - não vale a pena afirmá-lo expressamente. A mera expressão da fundamentação da sua opinião chega para mostrar a todos as concordâncias e discordâncias com intervenções anteriores. Em resumo, em Loja não se diz "não concordo com...", declara-se "o meu entendimento sobre o assunto em debate é este, por estas razões").

O Orador efetua o resumo do debate com o máximo de objetividade possível e coloca em relevo o sentir da Loja, o que resultou do debate. Ao fazer o resumo, o Orador evidencia se se verificou uma posição unânime, e em que sentido, se se manifestaram entendimentos diversos, mas um deles foi largamente maioritário, e qual, se há diversos entendimentos, sem que se tivesse destacado uma posição largamente maioritária, ou se o debate não foi conclusivo, por falta de elementos ou de opiniões consolidadas sobre a questão em análise.

Feito o resumo do debate, o Orador tira a sua conclusão, isto é, o parecer, a recomendação, que transmite ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar. A conclusão do debate tirada pelo Orador nada tem a ver com a posição pessoal que porventura tenha. Assinala se houve unanimidade ou, pelo menos, uma posição largamente maioritária - e, nesse caso, recomenda que o Venerável Mestre decida em conformidade com o sentido expresso pela Loja, sem necessidade de votação - ou indica as posições expressas que, não sendo evidente uma tendência largamente maioritária, devem ser colocadas à votação pela Loja. O enunciar dessas posições deve ser claro e inequívoco, para que a Loja, ao votar, saiba exatamente o que está em causa na escolha que vai fazer. Quando tal se justifique, seja por das intervenções ressaltar a falta de elementos suficientes para uma decisão devidamente fundamentada, seja por se notarem mais dúvidas do que certezas, o Orador deve recomendar o adiamento da decisão, sugerindo as diligências a efetuar para possibilitar, em devido tempo, uma decisão mais esclarecida.

Note-se que o Venerável Mestre não está obrigado a decidir em conformidade com as conclusões do Orador. Pode discordar e decidir em sentido diferente, formal ou substancialmente. É o Venerável Mestre aquele a quem a Loja delegou o exercício da autoridade. O Orador é - sempre - um colaborador, um auxiliar, do Venerável Mestre, nunca uma eminência parda que se lhe imponha. E isto mesmo até quando o Orador, no uso da sua competência de guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos, porventura chame a atenção do Venerável Mestre para uma infração ou falha que se esteja em vias de cometer. Ainda assim, o poder de decisão final é do Venerável Mestre e só do Venerável Mestre. Se errar, é ele quem erra e é ele que assume a responsabilidade do erro. Ao Orador compete avisar, não pretender sobrepor uma sua inexistente autoridade à única que vigora em Loja.

No final da sessão, após ter sido concedida a palavra a bem da Ordem ou da Loja (o que, em reuniões profanas corresponde ao "período depois da Ordem do Dia"...), o Orador tira as suas conclusões sobre a reunião. Não se trata aqui de sumariar as intervenções a bem da Ordem ou da Loja, porque estas, ou são meramente informativas ou, se carecerem de deliberação, são apenas introdutórias de um debate a efetuar em sessão futura. Trata-se de sumariar o que foi feito e deliberado na sessão. Este breve sumário, para além de evidenciar o trabalho realizado, facilita a tarefa do Secretário de elaboração da ata da sessão, a ser aprovada na reunião seguinte.

É também frequente que o Orador, nas suas conclusões finais, apresente uma (breve, muito breve) Prancha Traçada sobre um tema maçónico, preferentemente relacionado com o que se tratou na sessão em causa. Porém, tal NUNCA sucede quando na sessão tiver sido apresentada uma outra Prancha Traçada por um Mestre. Em cada sessão de Loja deve haver formação dos obreiros, deve ser apresentado, em contribuição para o trabalho de aperfeiçoamento dos obreiros, um trabalho, uma exposição, um estudo - em resumo, uma Prancha Traçada. É incumbência, dever, dos Mestres da Loja garantirem-no. Se o não fizerem, estão a prejudicar a aprendizagem e a integração dos Aprendizes e Companheiros e a própria evolução pessoal dos Mestres. Mas apenas deve ser apresentada e colocada à meditação da Loja uma única Prancha Traçada de Mestre. Mais do que isso, seria estabelecer a confusão. Um tema para meditação e estudo por sessão é o necessário e o suficiente. Assim, se nessa sessão, tiver sido apresentada por um Mestre uma Prancha Traçada, a conclusão final do Irmão Orador resumir-se-á ao sumário dos trabalhos (incluindo a referência a essa Prancha Traçada, obviamente). Se tal não tiver sucedido, incumbe ao Orador, Mestre que efetua a última intervenção formal antes do encerramento dos trabalhos, garantir que a Loja não fique sem matéria para estudo e meditação, através então de uma brevíssima Prancha Traçada, em que, mais do que ensinamentos ou proposições, deve levantar pistas para reflexão. Assim, ficam os trabalhos justos e perfeitos!

Rui Bandeira


21 novembro 2010

As elites e a curva de Gauss




Ao estudar a diversidade das populações, os matemáticos descobriram um facto curioso: muitas das populações, quando ordenadas por uma das sua dimensões - como o peso, a altura, ou mesmo a distância entre os olhos - distribuíam-se de acordo com uma curva em forma de sino, como a que pode ver-se na imagem que ilustra este texto. O ponto mais alto da curva corresponde ao valor médio, e as "pontas" correspondem aos valores que mais se afastam da média. No gráfico em causa, vemos a distribuição do QI (Quociente de Inteligência) de uma população. Sendo 100 o QI médio, vemos que podemos encontrar 68,2% (34,1 + 34,1) da população - mais de dois terços - entre os 85 e os 115. Entre os 70 e os 130 encontramos já 95,4% (13,6 + 34,1 + 34,1 + 13,6), o que significa que um pouco mais de 19 em cada 20 pessoas se encontram neste intervalo. Entre os 130 e os 145 encontramos 2,2% da população - tantos quantos encontramos entre os 55 e os 70. Mas é acima dos 145 (e abaixo dos 55...) que encontramos os grupos mais reduzidos: 0,1%. Um em cada mil. Os melhores - e os piores... - são sempre raros. Fácil é ser-se mediano. A este tipo de distribuição chama-se "distribuição normal", e a sua universalidade tem uma explicação matemática. Uma vez que o saber não ocupa lugar, e o conceito até é fácil de abarcar, vamos a ele.

Tomemos um dado de jogar: um cubo, com 6 faces, em cada uma das quais está inscrito um certo número de pintas: 1, 2, 3, 4, 5 ou 6. A probabilidade de cada face ficar por cima é igual para todas as faces. Suponhamos agora que lançamos o dado uma centena de vezes. é natural que "saia" cada um dos números o mesmo número de vezes - entre 16 e 17, uma vez que 100/6 = 16,666666. Até aqui, nada de novo.

As coisas começam, porém, a tornar-se interessantes se decidirmos lançar de cada vez não um mas dois dados, e registar a soma das pontuações. Podemos obter qualquer número de 2 a 12, inclusive, num total de 11 resultados diferentes, correspondentes respetivamente de um par de "uns" a um par de "seis". A probabilidade de se obter qualquer desses números é que não é igual. Senão, vejamos: para se obter "2" tem que se obter 1 no primeiro dado e 1 no segundo dado; não há outra forma. Já para se somar 3, podemos ter 1 no primeiro dado e 2 no segundo (1+2), ou 2 no primeiro dado e 1 no segundo (2+1). Pode, do mesmo modo, somar-se 4 com 1+3, 2+2 ou 3+1. A soma "7" pode ser obtida com 1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2 ou 6+1, ou seja, de seis formas distintas! Diz-se, por isso, que a probabilidade de obtermos "7" é 6 vezes maior do que a de obtermos "2". Se somarmos o número de formas que nos permitem obter um dado número, ficamos com:

Total de "2": 1 (1+1)
Total de "3": 2 (1+2, 2+1)
Total de "4": 3 (1+3, 2+2, 3+1)
Total de "5": 4 (1+4, 2+3, 3+2, 4+1)
Total de "6": 5 (1+5,2+4, 3+3, 4+2, 5+1)
Total de "7": 6 (1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2, 6+1)
Total de "8": 5 (2+6, 3+5, 4+4, 5+3, 6+2)
Total de "9": 4 (3+6, 4+5, 5+4, 6+3)
Total de "10": 3 (4+6, 5+5, 6+4)
Total de "11": 2 (5+6, 6+5)
Total de "12"": 1 (6+6)

Se lançarmos os dados cem vezes, é natural que obtenhamos a soma "7" cerca de seis vezes mais do que a soma "2". Os valores "2" e "12" são mais raros do que quaisquer dos restantes, ocorrendo em média uma vez em cada 36, enquanto que o valor "7" ocorrerá em média 6 vezes em cada 36, que é o mesmo que dizer 1 vez em cada 6. Os valores de "5" a "9", que são menos de metade dos números possíveis, acumulam entre si 24 em cada 36 lançamentos - ou seja, dois terços, ou quase 67%.

Se repetirmos o mesmo exercício com 3 dados, depois com 4, e por aí fora, ir-nos-emos aproximando sucessivamente de uma distribuição normal. É isto mesmo o que nos diz o "Teorema do Limite Central", de acordo com o qual "a soma de muitas variáveis aleatórias independentes e com mesma distribuição de probabilidade tende à distribuição normal".

Em qualquer população heterogénea há, incontornavelmente, quem se situe no topo, como sucede com a nata do leite que, rica em gordura, flutua sobre este, e donde vem a expressão "a nata da sociedade". Do francês - em que "crème" é, precisamente, a nata do leite - nos vem, precisamente, a expressão "la crème de la crème", que significa os melhores de entre os melhores. As elites, termo usado no século XVIII para nomear produtos de qualidade excepcional, viriam a constituir, por alargamento semântico do termo, grupos sociais superiores, tais como unidades militares de primeira linha ou os elementos mais altos da nobreza.

Quem tiver lido até aqui não estranhará, agora, ouvir-me dizer que as elites não são, no fundo, senão uma inevitabilidade matemática que tem na sua origem a própria diversidade humana. Se tomarmos como premissa que cada dimensão que procurarmos medir decorre de uma multiplicidade de fatores, podemos dizer que enquanto os homens forem diferentes haverá, para cada dimensão, uns grandes e outros pequenos, uns mais acima e outros mais abaixo, uns melhores e outros piores. As elites são, tão só, aqueles que se encontram junto ao limite superior da medida cujo critério tivermos estabelecido.

Paulo M.

17 novembro 2010

Diversidade


A Maçonaria é, por vezes, vista do exterior como uma instituição fechada, imutável, dotada de uma grande coesão, que atua em bloco. Esta visão não é, nem de perto, nem de longe, correta. Pelo contrário, a Maçonaria é dotada de uma invulgar diversidade, agrupando sob a mesma genérica denominação, realidades distintas, práticas diversas, entendimentos díspares. Em todos os aspetos, a começar logo pelas suas origens...

A maior parte dos estudiosos da Maçonaria considera que ela tem a sua origem nas corporações medievais de construtores em pedra, de catedrais, palácios, fortificações, etc.. Mas essas agremiações medievais, embora partilhando regras e costumes similares, tinham caraterísricas muito próprias e específicas, em função da sua localização geográfica. Só para falar das Ilhas Britânicas, a organização específica das Lojas Operativas inglesas diferia das escocesas, que por sua vez, tinham sensíveis diferenças das irlandesas. Em França, não se pode falar dos antecedentes históricos da Maçonaria sem referir a Compagnonage. As agremiações de construtores da Flandres tinham usos diversos das italianas e estas das teutónicas. Por isso, quando se afirma que a Maçonaria Especulativa moderna evoluiu da Maçonaria Operativa - afirmação que, pessoalmente, considero correta -, é bom que se tenha presente que esta evolução resulta de diferentes Tradições, não inteiramente díspares, mas também não totalmente semelhantes.

Mas, ainda no campo da origem da maçonaria, há aqueles que a situam nos Templários e respetiva Tradição. E aqueles que a fazem remontar aos Antigos Mistérios egípcios e ou mitraicos.

Só no tema das origens podemos detetar assinaláveis diferenças de entendimento, que conduzem a diversas posturas e práticas. É inevitável que haja diferenças de conceção, mais visíveis ou mais subtis, entre quem considera praticar algo que evoluiu das corporações medievais e quem acredita que a sua prática descende da tradição cavaleiresca religiosa e ainda quem considera a maçonaria herdeira dos herméticos mistérios da Antiguidade.

Mas a Maçonaria também assume estilos e práticas diversas em função dos grandes espaços em que se insere. Não é a mesma coisa falar-se da Maçonaria Americana e da Maçonaria Europeia Continental. Não é de todo a mesma a realidade da Maçonaria Inglesa e da Latinoamericana. Isto para não falar da diversidade asiática e da progressiva afirmação maçónica em África.

Mesmo dentro de cada bloco geográfico - diga-se assim - as Obediências Nacionais e as práticas maçónicas em cada país mostram-nos assinaláveis diferenças e visíveis variantes, designadamente em práticas rituais. Cada país tem uma discreta evolução própria, que, ao longo do tempo, adquire uma individualidade específica, também inerente às diversidades culturais dos diversos povos. Se se assistir a uma sessão de Loja em Itália, na Alemanha, em França, num país eslavo e em Portugal, ainda que em Lojas do mesmo rito - designadamente do Rito Escocês Antigo e Aceite - facilmente reconhecemos um ambiente comum, uma base partilhada, mas também diferenças, idiossincracias, práticas próprias.

Por outro lado, não olvidemos a transversal diferença existente entre a Maçonaria Regular e a Maçonaria Liberal, aquela trabalhando à glória do Grande Arquiteto do Universo e com os seus obreiros na busca de um aprofundamento espiritual, esta efetuando os seus trabalhos à glória do Homem e do seu aperfeiçoamento moral. Ambas têm a sua específica valia e ambas são - creio-o - necessárias. Mas as respetivas buscas são diferentes. Sem serem reciprocamente opostas, prosseguem caminhos diferentes, esta tendente a melhorar o relacionamento do Homem com a Sociedade e os diferentes grupos sociais, aquela trilhando a rota de uma espiritualidade baseada na Fé no UM universal, origem e reflexo de tudo e todos. Ambas as vias são - repito - respeitáveis e valiosas. Ambas têm assinaláveis pontos de contacto entre si, partilham aqui e ali caminhos e princípios e valores comuns. Ambas têm - sobretudo - a inestimável caraterística de integrarem homens que procuram ser melhores. Mas são intrinsecamente diferentes. Para os cultores de cada uma das vias, essa é a melhor. Intrinsecamente nenhuma é melhor do que a outra. Apenas diferentes.

Por outro lado ainda, a Maçonaria pratica-se em diferentes ritos, uns mais universais ou mais difundidos, outros mais seletos ou localizados. Sem preocupações de exaustão, podemos referir uma dezena de ritos hoje em dia praticados: Emulação, York, Escocês Antigo e Aceite, Escocês Retificado, Sueco, Brasileiro, Adonhiramita, Francês ou Moderno, Memphis-Misraim, Schröder. Cada um com simbologia própria ou diferente interpretação simbólica, ou diverso encadeamento do ensinamento. Todos diferentes. No entanto, cada maçom de um destes ritos, de visita a uma Loja de qualquer dos outros, reconhece ali Maçonaria...

Mesmo na mesma região, no mesmo país, na mesma Obediência, praticando o mesmo rito, cada Loja tem uma prática subtilmente diferente das demais. Tem a marca da sua individualidade, o resultado da sua evolução própria, a levemente diferente evolução de uma mesma matriz.

E, finalmente, dentro de cada Loja, que pratica o mesmo rito, que pertence a uma mesma Obediência, no mesmo país e na mesma região do globo... cada maçom é - inevitável e felizmente! - diferente do Irmão ao seu lado. Cada maçom tem a sua pessoal busca, a sua individual interpretação, o seu diferente caráter, a sua diversa história, o seu incomparável plano. Buscam todos o mesmo - o seu aperfeiçoamento -, utilizando o mesmo método, seguindo o mesmo rito, integrando-se no mesmo grupo. Mas, porque intrínseca e gloriosamente diferentes, não prosseguem todos o mesmo caminho, à mesma velocidade e não chegarão aos mesmos lugares. Embora naveguem à vista um dos outros. Embora se auxiliem e influenciem mutuamente. Cada um é um diferente maçom, ainda que na mesma maçonaria.

Quando se fala em Maçonaria, está-se na realidade falando de todas estas diversas maçonarias. Todas - mais ou menos - diferentes. Mas todas se incluindo no mesmo universal conceito de... Maçonaria.

Rui Bandeira

14 novembro 2010

A clivagem racial e cultural e o insucesso escolar


Li esta semana um artigo sobre o insucesso escolar dos negros nos EUA. E depois outro idêntico sobre o Reino Unido. Há anos que estes estudos vêm sendo feitos e refeitos e, não obstante a adoção de variadas estratégias com o propósito de mitigar as diferenças, chega-se sempre a resultados semelhantes: certos grupos raciais de estudantes obtêm piores notas e abandonam mais a escola do que outros. Estes estudos comparam frequentemente os resultados obtidos por crianças, adolescentes  e jovens oriundos de famílias do mesmo estrato sócio-económico - leia-se: habitando a mesma zona e frequentando as mesmas escolas, com pais com salários idênticos e idênticas habilitações.

É claro que, sempre que um estudo desta índole é feito, logo clamam vozes acusando-o de racista e discriminatório. Recordo que os factos não podem sê-lo, mas apenas, e eventualmente, a interpretação dos mesmos. Contudo, será difícil fazê-lo a estudos que constatem encontrar-se acima da média os estudantes de ascendência asiática, seguidos dos descendentes de judeus e de indianos, não obstante colocarem os de ascendência africana no fim da cauda. Os factos foram estes e, tendo sido recolhidos e tratados de acordo com as melhores práticas e normas da estatística, não serão passíveis de grande discussão. Já as tentativas da sua interpretação - e, especialmente, as medidas a tomar - levantam interessantes questões.

Uma das conclusões hoje em dia mais bem fundamentadas é a de que a questão não é de modo algum racial, mas cultural, e as suas raízes podem encontrar-se bem fundo na educação que as famílias dão às suas crianças desde o berço até que ingressam no sistema escolar. As expetativas dos pais para com os seus filhos por um lado, a forma como entendem o papel da escola por outro, condicionam o apoio - ou a falta dele - que as crianças receberão do seu núcleo familiar no sentido da obtenção de melhores resultados escolares.

É assim que, em famílias de ascendência asiática - em que o respeito quase reverencial para com os mais velhos é um valor cultural muito forte, e em que o trabalho e o esforço são entendidos como parte da normalidade da vida e como um caminho para o sucesso, o que leva os pais a andar "em cima dos filhos" para os fazer estudar e fazer os trabalhos de casa - as crianças têm, em média, dos melhores resultados escolares. Por oposição, famílias em que as crianças tratem os pais com displicência, passem o tempo livre a ver televisão ou na rua com os amigos, não se esforçando por obter bons resultados - e, mesmo, chamando a isso "to act white" (diríamos nós: "armar-se em branco") - não terão as mesmas alegrias na hora de assinar o boletim das notas.

Também importante é a diferente atitude  dos pais para com a escola e para com o seu próprio papel no sucesso escolar dos filhos. Enquanto que uns delegam por completo na escola todas as tarefas atinentes ao bom aproveitamento escolar, outros vêem a escola um parceiro sobre o qual não podem colocar todo o peso da educação da criança, e outros ainda, desconfiados da eficiência do sistema escolar, complementam-no das mais diversas formas, de explicações particulares a escolas de línguas, de música, de estudo acompanhado, sei lá... Certo, certo, é que será, essencialmente, o tipo de educação familiar o principal fator determinante para o sucesso escolar das crianças.

Por fim, não se pode generalizar: cada caso é um caso, cada criança é única, cada família é diferente. Pode, mesmo assim, tentar encontrar-se padrões, e tentar encontrar as causas dos problemas. Não basta, aqui, encontrar correlações: é mesmo necessário encontrar a causalidade.

Face a estas conclusões, que medidas se pode tomar? Aqui a questão torna-se, subitamente, muito mais delidada. Será que cabe ao Estado ensinar os pais a educar os filhos? Será o estilo de educação que cada um recebeu e transmite aos descendentes parte integrante da sua cultura? E sendo-o, poderá ou deverá o Estado dar orientações precisas no sentido de que as crianças - para bem destas últimas, entenda-se - devam ser educadas desta ou daquela maneira? Contra, eventualmente, a vontade dos pais? O respeito pela cultura de cada um, pela sua auto-determinação e, por fim, pela sua liberdade, não iriam colidir com tais hipotéticas medidas?

Esta questão, apesar de melindrosa, poderia perfeitamente ser discutida numa Loja como a Mestre Affonso Domingues. A questão levantada é filosófica, antropológica e, apesar de também política, não o é de forma partidária ou inevitavelmente conducente a divisões entre posições tomadas. Traz informação que é, certamente, útil a que cada um de nós entenda melhor o mundo que o rodeia, e ajudará, certamente, a combater preconceitos retrógrados. Estou certo de que qualquer opinião formulada seria no sentido de se dar prevalência ao respeito pela liberdade individual, que não haveria qualquer comentário racista - muito pelo contrário, e que seria salientado que a tolerância só faz sentido se houver diversidade. No fim, todos manifestariam agrado com o tema tratado, e cada um sairia com uma posição forçosamente diferente de todos os demais, mas enriquecida pela exposição a ideias diferentes daquelas que possuía.

Como vêem - e ao contrário do que dizem algumas vozes - há, numa Loja Maçónica, muito mais a discutir do que a cor dos aventais ou a decoração do templo.

Paulo M.

10 novembro 2010

O quarto Grão-Mestre


O quarto Grão-Mestre da GLLP/GLRP foi Alberto Trovão do Rosário. Exerceu o ofício entre 2004 e 2007.

Antes disso, tinha sido, em 2001, com José Manuel Anes, candidato ao exercício do ofício. Então, foi este quem foi eleito terceiro Grão-Mestre. Mas a divulgação das candidaturas a que então se procedeu mostrou a elevada qualidade de ambos os candidatos e José Manuel Anes soube interpretar bem o desejo que então se formou e designou Alberto Trovão do Rosário para o exercício do ofício de Vice-Grão-Mestre.

Trovão do Rosário colaborou assim no trabalho de normalização da vida da Grande Loja levado a cabo por José Manuel Anes e recebeu uma Grande Loja pacificada, em velocidade de cruzeiro, com a normalidade restabelecida.

Preocupado em preservar o rumo readquirido, Trovão do Rosário dirigiu a Grande Loja com particular prudência. Cada passo, cada iniciativa, era analisado e reanalisado, estudado e ponderado antes de ser dado ou de ser levado a cabo, por forma a garantir-se que não fosse um passo em falso, uma iniciativa falhada ou erradamente controversa. Esta prudência não foi bem vista pelos mais impacientes, que, com algum humor, não isento de carinho e respeito, brincavam com o nome do Grão-Mestre, apelidando-o de Travão do Rosário...

Mas provavelmente o quarto Grão-Mestre tinha e teve razão: há que deixar o tempo fazer o seu trabalho, que consolidar o que anteriormente foi abalado e reparado. A impaciência é generosa, o desejo de fazer é positivo, mas há um tempo para avançar e um para consolidar o progresso alcançado. O quarto Grão-Mestre considerou que o seu tempo era de consolidação - e a evolução futura deu-lhe razão! A melhor prova disso é o percurso bonançoso que a Grande Loja tem trilhado desde então.

Alberto Trovão do Rosário, professor universitário, foi e é um homem ponderado, de estudo, de organização e exposição do saber adquirido. Foi talvez esta a linha de força que deixou marcada na organização que dirigiu. O seu tempo foi de aprofundamento do que é, para que serve, a Maçonaria, foi de organização das nossas ideias. Para fazer este trabalho, é preciso sossego. Que não deve ser confundido com inércia...

Este blogue, em devido tempo, registou o pensamento do quarto Grão-Mestre, quando publicou, entre 30 de outubro e 20 de novembro de 2006, na íntegra, mas dividido em nove excertos, o seu artigo "A Actualidade da Maçonaria", originalmente publicado no boletim da Grande Loja, "O Aprendiz". Ainda hoje vale a pena reler este artigo. Ainda hoje tem as marcas da atualidade e da qualidade.

Alberto Trovão do Rosário não foi travão. Foi pausa, foi estudo, foi prudência. Foi o que era necessário na altura. E o seu trabalho possibilitou que o seu sucessor estabelecesse o seu rumo, sem receio de que o terreno da partida estivesse em falso. O vigor dos passos que se dá também depende da consolidação do terreno em que esses passos se dão... Hoje, quando o seu sucessor deu já por terminada a sua tarefa e novo elemento tomou as rédeas da Grande Loja, podemos com justiça afirmar que o tempo de consolidação proporcionado pelo quarto Grão-Mestre foi precioso.

Eis um excerto, retirado do sítio da Grande Loja, do percurso maçónico do quarto Grão-Mestre que, na vida profana, é Licenciado pelo Instituto Nacional de Educação Física, Doutorado, com Distinção, pela Universidade Técnica de Lisboa (Faculdade de Motricidade Humana) e assegurou uma bem sucedida carreira universitária.

Percurso Maçónico

  • Ex-Obreiro da RL Bocage, Obreiro da RL Santiago, Obreiro da RL Fraternidade, Obreiro da RL Pisani Burnay.
  • Nestas RRLL desempenhou todas as funções do quadro de Loja tendo sido VM da RL Santiago por duas vezes e sido VM da RL Pisani Burnay.
  • Ex-Grande Inspector (Rito de York).
  • Assistente do MR Grão-Mestre da GLLP/GLRP. Por inerência, foi membro do Grão-Mestrado.
  • Capelão do Capítulo «Mosteiro dos Jerónimos» (Arco Real).
  • Ilustre Mestre do Conselho da «Ordem de Santiago» (Graus Crípticos).
  • Generalíssimo da Comenda «D. Henrique o Navegador», integrada na Grande Comenda dos Cavaleiros Templários de Portugal, juntamente com as Ordens da Cruz Vermelha e de Malta.
  • Grande Prelado do Conclave «Henrique de Bourgogne» da Ordem Maçónica e Militar da Cruz Vermelha de Constantino e das Ordens anexas do Santo Sepulcro e de S. João Evangelista.
  • Supremo Magnus substituto da Societas Rosacruciana in Lusitania.
  • Membro do Shrine (Europa)
  • Membro do Shrine (Internacional).
  • Representante do GC dos MC do Arizona junto do GC de MR e E de Portugal.
  • Representante do GC dos GC do RAM do Arizona junto do Supremo Grande Capítulo do Arco Real de Portugal.
  • Foi Presidente da Comissão Científica do Iº Congresso da Maçonaria Regular.
  • Foi Vice-Presidente e Presidente da Direcção da associação profana Grande Loja Legal de Portugal.
  • Criador, com outros obreiros, da colecção «Cadernos Maçónicos», na RL Santiago, em 1997. Posteriormente, a publicação desta colecção prosseguiu na RL Astrolábio.
  • Autor de dezenas de pranchas, artigos e comunicações sobre temas maçónicos.
  • Autor, com NN Fernandes, do livro «Mozart e a Flauta Mágica - Espiritualidade, Música e Maçonaria.
Rui Bandeira

07 novembro 2010

Os símbolos em Maçonaria: o ensinar e o aprender


É conhecido que a maçonaria recorre extensivamente a símbolos como forma de transmissão do conhecimento. É evidente que esses símbolos terão algum significado. O que, todavia, é menos evidente, é que não há significados universalmente aceites ou impostos para os símbolos maçónicos. O que um interpreta de um modo, outro pode interpretar de modo diverso. Assim sendo, de que serve a simbologia na maçonaria? A que aproveita essa "plasticidade" nos significados dos símbolos? E como é que se pode usar os símbolos como meios de comunicação do seu significado subjacente, se esse significado pode variar de pessoa para pessoa?

Para o entendermos, temos que recuar no tempo. Bem antes da maçonaria especulativa ter surgido - o que sucedeu, oficialmente, em 1717 - já os maçons operativos se socorriam de símbolos para se recordarem dos ensinamentos que os seus mestres lhes haviam transmitido. De facto, muitos dos trabalhadores da pedra não sabiam ler nem escrever, pelo que se socorriam de pictogramas e representações de objetos para o efeito. Os símbolos não eram propriamente secretos; o seu significado - as técnicas a que os mesmos se referiam - é que era apenas revelado a alguns. A maçonaria especulativa veio a adotar esse método de transmissão de conhecimento. Assim, hoje como outrora, os símbolos são auxiliares de memória, instrumentos de suporte ao conhecimento, verdadeiras mnemónicas- diriamos hoje: são cábulas - que nos permitem recordar, evocar e especular.

Mas se o seu significado pode ser individualizado, como é que o conhecimento passa sem se perder, sem se desvanecer, sem se espraiar numa mar de semânticas? De forma muito simples: para tudo há um início, e o método consiste, precisamente, em dar a cada um os pontos de partida, sem estabelecer qualquer ponto de chegada... Assim, a um aprendiz é, desde logo, ensinado o significado comum de vários símbolos: o esquadro, o prumo, o nível, o mosaico bicolor do chão dos templos, a pedra bruta, a pedra polida, entre outros. É das poucas ocasiões que, em maçonaria, alguma coisa é verdadeiramente ensinada, e mesmo aí os significados gerais são dados com parcimónia de explicações e de forma sucinta e concisa. A cada um é dito, então, que deverá procurar interpretar cada símbolo de forma pessoal, podendo quer aplicar o significado original, quer levá-lo até onde o deseje. E é esse o trabalho do aprendiz: estudar os símbolos, construir um significado em torno dos mesmos, e aplicá-lo a si mesmo.

E como se mantém um denominador comum? Quando um maçon se refere ao prumo, os demais sabem que se refere à retidão moral, à integridade, à verticalidade de caráter - aquilo que ouviu quando, ainda aprendiz, lhe "apresentaram" os símbolos. Contudo, mais tarde cada um irá interiorizar a seu jeito o que estas palavras significam. O que será sinal de caráter para um poderá ser duvidoso para outro; a nenhum, porém, é imposto qualquer significado universal. E porquê? Porque, se a maçonaria se destina a tornar cada homem num homem melhor, deve fazê-lo dentro do absoluto respeito pela sua liberdade. Por isso se diz que em maçonaria tudo se aprende e nada se ensina, no sentido de que cada um deve procurar os seus próprios ensinamentos sem esperar que lhos facultem. Cada um deverá poder procurar, no mais íntimo de si, o que quer fazer dos princípios que lhe são transmitidos: se quer segui-los ou ignorá-los, quais aqueles a que vai dar maior preponderância, e até onde vai levar esse ânimo de se superar. E é por tudo isto que, sendo essa luta de cada homem consigo mesmo algo de mais único do que uma impressão digital, a liberdade individual de interpretação se impõe sobre qualquer eventual tentativa de normalização do significado dos símbolos.

Paulo M.

03 novembro 2010

Vencedor e... vencedor!


Quando decorreu o processo eleitoral para a eleição do terceiro Grão-Mestre, a GLLP/GLRP estava ainda em convalescença da cisão que abalara o mandato do segundo Grão-Mestre. Esse processo eleitoral teve uma diferença substancial em relação aos anteriores: enquanto, quer Fernando Teixeira, quer Luís Nandin de Carvalho tinham sido candidatos únicos, para a eleição do terceiro Grão-Mestre apresentaram-se dois candidatos: José Manuel Anes e Alberto Trovão do Rosário.

José Manuel Anes era bem conhecido. Fora um prestimoso colaborador de Luís Nandin de Carvalho e em boa parte também a ele se devera a manutenção do reconhecimento internacional, após a cisão. Alberto Trovão do Rosário, professor universitário, obreiro de uma Loja no distrito de Setúbal, era então menos conhecido, mas era-lhe reconhecida grande capacidade, profunda estatura cívica e intelectual e era ardentemente apoiado por alguns Irmãos que suportavam a sua candidatura.

Recentemente cicatrizada de uma cisão, a GLLP/GLRP e os seus obreiros não pretendiam propiciar condições para que uma outra viesse a ocorrer. As duas candidaturas preocuparam-se assim em atuar de forma a que nenhuma fagulha ativasse indesejável braseiro. Pela primeira vez havia disputa eleitoral, importava demonstrar que esse facto integrava a normalidade da vida institucional da Obediência. Sabia-se que alguém havia de vencer e alguém haveria de perder a eleição. Isso era normal e fazia parte do processo eleitoral. Importava que a aceitação do resultado eleitoral fosse consensual e não criasse risco de perturbações - já tínhamos tido a nossa conta delas!

A divulgação das candidaturas e seus projetos - aquilo a que vulgarmente se designa por campanha eleitoral... - decorreu de forma exemplar: cada candidatura elaborou os seus documentos, que foram divulgados e distribuídos pela estrutura da GLLP /GLRP, com rigorosa imparcialidade. Ambos os candidatos se deslocaram às Lojas para se apresentarem e com os obreiros das Lojas debater os respetivos projetos. Mas essas deslocações tiveram a particularidade de terem sido feitas em conjunto. Não houve campanhas eleitorais, houve a apresentação de projetos, em sadio confronto.

Dificilmente se poderia ter tomado melhor opção! O processo eleitoral decorreu em harmonia, sem incidentes, cada um apresentando as suas ideias e assistindo à apresentação das ideias do seu opositor. Tudo decorreu com elevação, em verdadeira fraternidade.

No decorrer desse processo, verificou-se que as bases, as Lojas e seus obreiros, apreciaram a forma como ambos os candidatos divulgaram os seus propósitos. Verificaram que tinham perante si dois verdadeiros potenciais Grão-Mestres. Sabiam que só um seria eleito. Mas demonstravam o seu apreço por ambos. Consensualmente, a ideia surgiu, a sugestão foi verbalizada, o apelo foi feito, a opinião, Loja a Loja, coletivamente foi formada: um dos dois candidatos seria eleito, mas ambos eram merecedores de o ser. Então, sendo inevitável que houvesse um eleito e um não eleito, havia que proceder da forma que melhor se pudesse reconhecer esse mérito de ambos os candidatos. Loja a Loja, a mensagem que os candidatos ouviram afinava pelo mesmo diapasão: o candidato eleito Grão-Mestre deveria designar o outro candidato Vice-Grão-Mestre!

Talvez inicialmente não fosse essa a ideia dos candidatos. Mas o pulsar da Obediência era inequívoco.

E assim foi feito! Apurados os resultados da eleição, verificou-se que fora eleito para terceiro Grão-Mestre José Manuel Anes. Não se soube - está definido que não se saiba! - se a sua eleição ocorreu com grande ou pequena vantagem. Não houve elementos quantitativos a deslustrar a valia qualitativa de ambos os candidatos. E o Grão-Mestre eleito designou como Vice-Grão-Mestre o seu opositor na eleição!

Alberto Trovão do Rosário foi assim designado Vice-Grão-Mestre, com toda a legitimidade, com todo o peso institucional que a exemplar atuação de ambos os candidatos na eleição permitiram que lhe fosse conferido.

E foi assim que, de uma assentada, a GLLP/GLRP, recentemente cicatrizada a ferida da cisão, elegeu, não um, mas dois Grão-Mestres! Porque logo então se percebeu que, salvo qualquer anormalidade, não se tinha eleito apenas o terceiro Grão-Mestre: também se tinha escolhido o seu sucessor!

Rui Bandeira

01 novembro 2010

A liberdade na interpretação da simbologia maçónica


Magritte pintou, entre 1928 e 1929, um célebre quadro em que representa um cachimbo sob o qual escreveu "Ceci n'est pas une pipe." ou, em português,  "Isto não é um cachimbo". De facto, a pintura não é um cachimbo, mas a imagem de um cachimbo - e transmitir essa ideia era o intuito de Magritte. "O famoso cachimbo", viria ele a confessar, "Quanto me censuraram por causa dele! E porém, alguém poderia encher o meu cachimbo? Não, pois é só uma representação, não é verdade? Por isso, tivesse eu escrito no meu quadro «Isto é um cachimbo», estaria a mentir."

Um símbolo - do grego σύμβολον (sýmbolon) - pode ser um objeto, uma imagem, uma palavra, um som ou uma marca particular que represente algo diferente por associação, semelhança ou conceção. Deste modo, pode substituir-se um conceito complexo por um símbolo simples. O significante é evidente - constitui o símbolo em si mesmo; contudo, o seu significado pode ser obtuso, ou mesmo variável com o tempo, pois reside naquele que o descodifica, e cada um acaba por fazê-lo de forma pelo menos ligeiramente diferente dos demais. Por isto, é quase certo que, uma vez estabelecidos, os símbolos "adquiram vida própria", alterando-se o seu significado com o passar do tempo. Por exemplo, a Estrela de David é um símbolo que começando por constituir - de acordo com a tradição judaica - uma marca aposta nos escudos com que os guerreiros do rei David se protegiam, adquiriu, a partir de certa altura, um caráter místico, passando a ser gravado como amuleto ou proteção, e acabando por ser adotada como símbolo do Estado de Israel.

Não pode falar-se de simbolismo maçónico sem citar a velha definição de maçonaria: "É um sistema de moral velado por alegorias e ilustrado por símbolos". De facto, a maioria dos símbolos usados em maçonaria é evocativa dos princípios morais com que a maçonaria se identifica. O importante são os princípios; os símbolos são apenas os meios usados para que não os esqueçamos. E, uma vez que cada um recorda de forma diferente, e interioriza o princípio de forma única e pessoal - pois que único, individual e irrepetível é cada indivíduo e a sua experiência de vida - seria um exercício de futilidade tentar-se exigir que o significado dos símbolos fosse sempre o mesmo para todos. De facto, nem tal seria proveitoso.

Uma das frequentes utilizações dos símbolos é como oportunidade e meio de auto-análise - e também por isso se diz da maçonaria ser especulativa - que permita a cada um determinar as suas próprias "asperezas" no sentido de as "polir". Sendo as "rugosidades do espírito" diferentes de pessoa para pessoa - apesar da universalidade dos princípios, que podem aplicar-se a todos - cada um vê, sente e aplica o princípio a si mesmo de forma distinta da de todos os demais. Cada um pode, então, especulando, dar ao símbolo os significados que entenda, pois o símbolo é meramente instrumental - não tem nada de sagrado ou de "conspurcável" com este processo - para além de que atribuir novos significados a um símbolo não implica a perda dos significados mais convencionais, pelo que o diálogo sobre os mesmos continua a ser possível.

Dou-vos um exemplo que se passou comigo. Diz-se das lojas maçónicas serem "Lojas de S. João". Mas de qual? A resposta convencional é dizer-se que de dois: de João Batista - conhecido pela sua retidão e verticalidade, implacável consigo mesmo e com os outros, a ponto de fazer com que lhe cortassem a cabeça - e de João Evangelista - apóstolo do amor, cultor da fraternidade, e promotor da tolerância. Ambos se celebram por volta dos solstícios - João Evangelista no de Verão, João Batista no de Inverno. Isto são as premissas. Os princípios a transmitir são os que foram expostos: o da retidão e verticalidade de espírito por um lado, e o do amor fraterno pelo outro. Estes significados são mais ou menos universais na maçonaria. Há quem refira, ainda, que os raios de sol no solstício de Verão estão no seu ponto mais próximo da vertical, e no solstício de Inverno no seu ponto mais próximo da horizontal. Partindo desta pista, ávido de explorar estes símbolos e de fazer boa figura ao apresentar a respetiva prancha, o aprendiz que eu era então não se ficou por aqui; procurou especular mais ainda. Notou que João Batista - o da Verticalidade - era celebrado por entre uma Luz predominantemente horizontal, e que João Evangelista - o do amor fraterno entre pares - o era quando a Luz Solar era mais vertical. Conclusão? "Devemos ser equilibrados e equilibrantes: retos e justos quando à nossa volta todos falem de fraternidade e tolerância, e tolerantes e fraternos quando insistam na aplicação dos princípios de forma implacável."

São um significado e uma conclusão com alguma lógica? São - pelo menos, do meu ponto de vista. É um significado universalmente reconhecido? Não. E está certo? Ou está errado? Bom... para mim, parece-me certo, na medida em que foi instrumental para que aplicasse a mim mesmo os princípios referidos de forma mais eficaz. Para outros não resultará. Os símbolos são isso mesmo: instrumentos, meios, meras ferramentas coadjuvantes na prossecução de um objetivo maior. Aqui posso dizer: se da "adulteração" do significado "puro" e "convencional" do símbolo resultou  a melhor aplicação do princípio à minha vida tornando-me numa pessoa melhor, então - porque a ninguém prejudica o meu entendimento peculiar deste símbolo - o exercício foi profícuo. Se, para além disso, a alguém aproveitou para além de mim, então dou-me por muito satisfeito...

Paulo M.