31 outubro 2012

Regras Gerais dos Maçons de 1723 - XXVI

O Grão-Mestre deve escolher dois ou mais Irmãos de confiança para Porteiros, ou guardadores das portas, os quais devem também apresentar-se cedo no local, por óbvias e evidentes razões, e estarão às ordens do Comité.

Esta Regra - que, recorde-se, figura entre o conjunto de regras relativas à organização da reunião festiva anual da Grande Loja de Londres e Westminster, no primeiro quartel do século XVIII - contém referência a ofício que permanece em todas as Lojas maçónicas, de vários ritos: Guarda Interno  ou a dicotomia Guarda Interno e Guarda Externo.

O Guarda Interno é o ofício mais "modesto" da Loja. Tem uma muito breve intervenção no ritual de abertura dos trabalhos e, para além dela, apenas intervém sempre que se torna necessário que alguém entre ou saia da sala onde decorrer a reunião, abrindo e fechando a porta. Não admira que, familiarmente, seja, por vezes referido como o "Oficial Porteiro"...  Porventura quando, descontraída e jocosamente, se faz esta referência, não se tem a noção de que... essa mesma foi a designação escolhida pelas Regras Gerais dos Maçons consignadas na Constituição de Anderson de 1723!

O facto de este ofício ser o mais "modesto", o último na hierarquia de ofícios da Loja, não é, porém, sinónimo de menor importância ou de que seja menosprezado pelos maçons. Pelo contrário, como em quase tudo o que é feito em Loja, os maçons frequentemente aproveitam para conferir uma carga simbólica a esse ofício. Assim, é corrente que o exercício desse ofício seja assegurado durante um ano maçónico por aquele que, no ano anterior, foi o Ex-Venerável da Loja e, dois anos antes, dirigira a mesma, sentado na Cadeira de Salomão. Aquele que dirigiu a Loja, findo esse seu trabalho, coloca a sua experiência à disposição do seu sucessor, sentando-se, como Ex-Venerável, ao lado deste, disponível para lhe prestar o seu conselho, sempre que necessário. Quando, por sua vez, o seu sucessor termina o seu período de exercício do ofício de Venerável Mestre e é ele que assume as funções de Ex-Venerável, aquele que dirigiu a Loja e que depois aconselhou o seu sucessor... vai exercer o ofício mais modesto, menos exigente, menos "importante", da Loja. 

Com este hábito, procuram os maçons simbolizar várias coisas: (1) que todos os ofícios em Loja são importantes e que o funcionamento harmonioso da Loja depende da conjugação de todos eles, pelo que se reserva o exercício do ofício menos exigente para aquele que, durante dois anos, exerceu sucessivamente, os dois mais "nobres" ofícios da Loja; (2) que o trabalho bem feito é importante e compensador, independentemente da sua "nobreza" ou da sua hierarquia, podendo e devendo aqueles que exerceram as mais exigentes funções assegurar, com o mesmo interesse, pundonor e dedicação, funções tidas como mais humildes ou menos importantes, sem que isso diminua - pelo contrário! - a importância que os seus pares lhe reconhecem. Para todos os efeitos, o Guarda Interno é um ofício singelo, exercido por um... Antigo Venerável; (3) sic transit gloria mundi (assim passa a glória do mundo): o maçom sabe que a liderança, o "poder", a "importância" são passageiros, que o exercício de ofício em que se dirige é apenas temporário e que, terminado esse ciclo, outras tarefas o aguardam.

Numa Loja bem organizada, esta evolução do ofício mais exigente para o mais modesto revela-se também uma saudável forma de lidar com a evolução da vida maçónica. O maçom é iniciado, faz o seu percurso de Aprendiz e Companheiro, chega a jovem Mestre, progressivamente vê serem-lhe confiadas responsabilidades, primeiro transitoriamente, em substituição de oficiais impedidos, depois pontualmente, em tarefas determinadas e organizações específicas da Loja, em seguida mais permanentemente, com o exercício, como titular, de sucessivos ofícios, em preparação para o culminar da sua tarefa em Loja: dirigi-la como Venerável Mestre. Atingido o cume da colina, há que saber descê-la. Sai-se da liderança para o aconselhamento do sucessor. Depois de vários anos de dedicação e esforço, exerce-se seguidamente, como Guarda Interno, um ofício menos exigente, quase que como um descanso ativo, em transição para a dissolução no conjunto das colunas. A sua tarefa na administração da Loja ficou completa, agora há que apenas manter disponível a sua experiência para auxílio e benefício dos mais novos, tal como anteriormente se beneficiou do apoio dos mais antigos. A Loja, na sua perpétua evolução, é dirigida já pela geração seguinte de iniciados, que prepara a que lhe sucederá, e assim sucessivamente. Os mais antigos asseguram a sua tarefa de depositários da Tradição e da História da Loja, contribuindo para a manutenção da sua identidade, sem prejudicar a sua renovação. E só intervêm quando solicitados ou em episódica dificuldade, para ajudar a que a Loja prossiga, sem sobressaltos de maior, o seu percurso. O ofício de charneira entre os períodos de formação e de direção, por um lado, e o período de disponibilidade e aconselhamento dos mais novos é, precisamente o tal ofício menos "importante", menos exigente, de Guarda Interno. Quem porventura considere de menor valia e interesse este ofício, é melhor pensar de novo e pensar melhor!

Há ritos maçónicos que têm apenas o ofício de Guarda Interno (Rito Escocês Antigo e Aceite, por exemplo) e ritos que dispõem de Guarda Interno e Guarda Externo (Rito de Emulação, por exemplo; e, de forma geral, os ritos de origem britânica). O ritual original da Grande Loja de Londres e Westminster previa dois Guardas (ou mais, nomeadamente dependendo do número de portas de acesso à sala de reunião).

Esta diferença tem a ver com duas simbolicamente diferentes conceções de um valor que é caro à Maçonaria: a Paz!

Não nos esqueçamos que a Maçonaria Especulativa evolui da sua antecessora Maçonaria Operativa numa época marcada por sucessivas guerras civis em Inglaterra (Lealistas contra Parlamentaristas, Católicos contra Anglicanos, Stuarts contra Hannovers) enfim um período turbulento - e violento - na sociedade britânica. As Lojas maçónicas eram oásis de paz, de concórdia, nesses tempos difíceis, em que adversários políticos, por vezes adversários nos campos de batalha, ali punham de lado as suas divergências e confraternizavam como Irmãos que eram. Porventura desavindos, mas irmãos... Os rituais ingleses dispunham assim que o Templo, a sala de reuniões, sendo um lugar de paz e de concórdia, devia estar livre de armas. O Guarda Interno, o Guarda que estava do lado interior da porta de acesso, estava, assim, desarmado. Mas era necessário garantir a segurança dos que se reuniam e vedar o acesso a quem não tinha lugar nessas reuniões (não nos esqueçamos que, em tempos de conflito, confraternizar com opositores ou inimigos, não era propriamente bem visto...). Portanto, do lado exterior da sala tinha que existir pelo menos um homem armado, para o que desse e viesse, o Guarda Externo, esse, sim, então armado da sua espada - e que nunca entraria na sala de reunião com ela.

Já o Rito Escocês Antigo e Aceite e os ritos dele derivados ou por ele influenciados partem do princípio de que não são as armas que atentam contra a paz e a concórdia: é o uso que delas se faz que pode atentar contra as mesmas. As armas podem ser necessárias e úteis para prevenir ataques e conflitos, para defender valores. Assim, a presença de armas - espadas - no interior do Templo, da sala de reunião, não é interdita. Mais: vários oficiais usam-nas nos seu ofícios: o Venerável Mestre tem uma espada que é um dos símbolos do poder de que está investido e empunha-a em vários significativos momentos rituais. O Experto e o Guarda Interno usam espadas. Momentos rituais existem em que todos os elementos da Loja devem empunhar espadas, não em homenagem ao belicismo mas, pelo contrário, em defesa da Paz e dos valores humanistas. 

Ainda hoje, nas Lojas que, como a Loja Mestre Affonso Domingues, trabalham no Rito Escocês Antigo e Aceite, regular e rotineiramente se usam espadas. Mas, para que não haja equívocos, as espadas que hoje se usam são meramente cerimoniais, isto é, de lâminas rombas, que nada cortam, a não ser, porventura, manteiga desde que esteja temperatura de verão... É que o tempo dos espadachins já passou, o Diabo tece-as, prevenir é melhor que remediar e não queremos que ninguém se aleije... 


Fonte:

Constituição de Anderson, 1723, Introdução, Comentário e Notas de Cipriano de Oliveira, Edições Cosmos, 2011, página 142.

Rui Bandeira

5 comentários:

Joaquim Almeida Santos disse...

Saúdo_Os com Fraternal Abraço,
Interessante forma de demonstração de humildade; "...que o trabalho bem feito é importante e compensador, independentemente da sua "nobreza" ou da sua hierarquia, podendo e devendo aqueles que exerceram as mais exigentes funções assegurar, com o mesmo interesse, pundonor e dedicação, funções tidas como mais humildes ou menos importantes, sem que isso diminua - pelo contrário! - a importância que os seus pares lhe reconhecem". Quanto beneficiaria a Terra em os Humanos reconhecerem, profundamente, a importância desta prática no seu quotodiano?

Diogo disse...

Caro Rui Bandeira,

Continua você convencido que os ritos e os segredos de pedreiros que construíam castelos e catedrais (tal como os ferreiros malhavam o aço), fascinaram a nobreza e os cientistas europeus – os Newton, os Descartes, os Galileus?

Abraço

Rui Bandeira disse...

@ Diogo:

Descartes (La Haye en Touraine, 1596 - Estocolmo, 1650) e Galileo Galilei (Pisa, 1564 - Florença, 1642) nada têm a ver com Maçonaria. Quanto a Isaac Newton (Woolsthorpe-by-Colsterworth, 1642 - Londres, 1727), não há prova documental de que tenha sido maçom, mas, se não foi membro de uma Loja anteriormente à criação da Grande Loja de Londres, em meu entender conhecia, se é que não influenciou, o movimento que viria a culminar nessa criação (consulte-se http://en.wikipedia.org/wiki/Isaac_Newton%27s_occult_studies#Newton_and_Freemasonry).

DEpois de concluída esta série de textos sobre a Constituição de Anderson de 1723 (o que só sucederá no início dopróximo ano), dedicarei alguns textos às origens da Maçonaria, que certamente melhor oelucidarão.

Por agora, deixo-lhe apenas uma ideia: no meu ponto de vista, não se trata de a nobreza e os cientistas terem sido fascinados pelos ritos e segredos dos construtores em pedra, mas sim do aproveitamento e apropriação por estes (mas não só) de uma estrutura arcaica e em declínio para enquadramento de um conjunto de ideais e princípios, então novos ou emergentes na sociedade da época.

Abraço.

Diogo disse...

Caro Rui,

Para que diabo precisava uma boa parte da nobreza e da comunidade científica de uma «estrutura» arcaica e em declínio criada por pedreiros semi-analfabetos?

Abraço

Rui Bandeira disse...

@ Diogo:

Meu caro, a paciência é uma inestimável Virtude!

Procurarei esclarecer também esta sua questão na projetada série de textos sobre as origens da Maçonaria. Nãoé possível nas poucas linhas de um comentário desenvolver adequadamente o raciocínio e explanar o meu pensamento sobre o assunto.

Deixo-lhe, no entanto, uma pista: não considere o assunto com os olhos e o pensamento do século XXI; procure considerar as condições sociais, religiosas e políticas da Inglaterra do século XVII...