28 novembro 2010

A pedra bruta



O aprendiz tivera recentemente a sua primeira lição sobre a pedra bruta e a pedra polida. Foi-lhe explicada a base, o essencial, o ponto de partida do significado desses símbolos, que depois interiorizaria e desenvolveria por si mesmo. Aprendeu, então, que a pedra é cada um de nós; que o nosso trabalho consiste em "aparar" as nossas asperezas de modo a atingirmos um estado de maior perfeição - ou de polimento - para que, por fim, juntos, formemos essa sublime construção, esse supremo templo que o Homem edifica, a partir de si mesmo, à Glória do seu Criador.

Várias noites seguidas o aprendiz adormeceu sobre o assunto, e sonhou com pedras de todos os feitios. Sonhou com enormes e antigos rochedos cobertos de um musgo ancestral; sonhou com areia fina, outrora parte de imponentes escarpas e agora reduzida a pó; sonhou com mós de moinho, com as pedras dos muros das aldeias da sua infância, com a calçada da cidade, com esquinas de prédios, com gravilha, com os seixos rolados que lançava fora quando abria um buraco no quintal e cuja forma traía um longo percurso de leito de rio e de enxurradas de Outono.

Num dos seus sonhos, o seu olhar recaiu sobre um calhau quase em bruto, semi-enterrado, com um dos lados mais plano - o mais batido pela intempérie - e o resto, por ter passado a maior parte do tempo oculto debaixo da terra, ainda cheio de rugosidades e imperfeições. Algo de familiar lhe chamara a atenção para com aquela pedra, pelo que a fixou com atenção. Logo acordou, mas aquele calhau, mais áspero de uns lados, mais liso de outro, não lhe saía da cabeça.

Só dias depois, ao fazer uma introspeção sobre as suas fraquezas e as suas forças, se reconheceu, não sem algum embaraço, na pedra com que sonhara. O seu lado mais polido - aquele, afinal, em que mais tempo investira, e que era aquele que lhe punha o pão na mesa - estava, não obstante, rachado e eivado de sulcos aqui, mas ali ainda com sinais de pouco trabalho e pouca perseverança que traíam a rugosidade original. Do resto nem valia a pena falar; precisava de tudo.

Inspirou fundo e quase desistiu; a tarefa era árdua, e não sabia sequer por onde começá-la. Apercebeu-se, então, que nem sequer sabia onde queria chegar, pelo que não fazia sentido meter-se, antes disso, ao caminho. O que deveria fazer dessa pedra que era ele mesmo?

Inquieto, procurou junto de um dos seus Mestres orientações quanto ao que deveria fazer. Este, à guisa de resposta, mostrou-lhe dois muros, igualmente sólidos e compactos: um, formado por pedras de forma paralelepipédica, cada um com as suas 6 faces laboriosamente aparadas; outro, formado por pedras irregulares mas firmemente encaixadas umas nas outras, em que apenas uma ou duas faces - as exteriores - tinham sido polidas, mas essas, oh, como brilhavam!

Mais baralhado ainda, perguntou ao Mestre que pedra deveria ser, e o que deveria fazer para o atingir. Deveria ir aparando, nas várias faces, as rugosidades maiores, esperando que, ao fim de muitas passagens, a forma se fosse compondo? Ou deveria investir numa ou duas das faces e ignorar as restantes? Ou, pelo contrário, deveria trabalhar todas, mas dando forte preponderância a uma ou duas, e limitando-se a atingir os mínimos nas remanescentes?
Respondeu-lhe o Mestre que não tinha resposta para lhe dar. Que cada um deveria aparelhar a sua pedra da forma que entendesse ser a mais perfeita, e que o Grande Arquiteto saberia usá-la, como ficasse, na construção do Templo. Umas, mais toscas, seriam usadas como enchimento, sem o qual as paredes não teriam consistência para se suster; outras, mais ornamentadas, seriam colocadas em lugar de destaque, mas seriam eventualmente mais frágeis; outras ainda, robustas e fortes, aparadas de forma milimétrica mas sem quaisquer adornos, tornar-se-iam nas pedras que susteriam os vãos e as abóbadas. Algumas pedras, pela sua própria natureza, nunca poderiam servir para certos fins; mas todas conseguiriam tornar-se úteis para alguma coisa, e tanto mais úteis quanto mais trabalho tivesse sido despendido nas mesmas.

O Aprendiz olhou então, longamente, a sua pedra, inspecionou minuciosamente a face mais polida - mas imperfeita - bem como as outras, rugosas e ásperas, e lançou-se ao trabalho.

.·.

Anos mais tarde, já o Aprendiz chegara, por sua vez, a Mestre, tendo a oportunidade de ir apreciando os trabalhos dos Aprendizes e Companheiros da sua Loja, e o quanto eram diferentes uns dos outros. Enquanto uns se esforçavam mais por distribuir o seu esforço por várias faces - obtendo belas peças geométricas que formavam um todo harmonioso, em que nenhuma face sobressaía das demais - outros persistiam em trabalhar a mesma face até que esta brilhasse como um espelho, ofuscando as imperfeições que haviam ficado por trabalhar nas restantes, e que podiam, mesmo, ser vistas como uma promessa de aperfeiçoamento futuro. Em todas elas o Mestre teve oportunidade de aprender algo de novo. E apercebeu-se, então, de que o seu  Mestre tivera razão, pois que de nenhuma poderia dizer, com segurança, que fosse melhor do que as outras.

Paulo M.

24 novembro 2010

O Orador


O Orador é o guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos em Loja, pela Loja e pelos obreiros da Loja. Integra, com o Venerável Mestre e o 1.º Vigilante, a Comissão de Justiça da Loja. É o único obreiro que pode interromper qualquer outro obreiro, incluindo o Venerável Mestre, quando se lhe afigure necessário para assegurar o cumprimento dos princípios, leis ou regulamentos maçónicos. Não admira, assim, que a medalha do Orador seja constituída por uma imagem das Tábuas da Lei.

O Orador é um ofício específico do Rito Escocês Antigo e Aceite, que não deve ser confundido, por exemplo, com o ofício de Capelão em outros ritos. Com efeito, o Orador é o oficial da Loja que tem, além da anteriormente referida, a função ritual de proferir Orações. Mas isso não quer dizer Preces... A Oração proferida por este Oficial da Loja é de outra natureza: o Orador tira, de cada debate, as suas conclusões e nisso deve consistir a Oração final (no sentido de "intervenção oral") que lhe compete produzir. Assim, compete ao Orador, no final de cada debate, resumir e organizar as várias posições que tenham sido expostas e, em função das mesmas dar o seu parecer ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar e a forma como deve ser tomada.

Recorde-se que o debate em Loja processa-se segundo regras rígidas, tendentes a possibilitar a livre expressão da opinião de cada um, sem constrangimentos nem perturbações. Importa a substância do que é transmitido, não a sua forma. Debate-se, no sentido de se analisar uma questão e tomar uma decisão; não se discute para procurar fazer valer a sua opinião, para levar de vencida opositores (pois em Loja não há opositores, apenas Irmãos que cooperam) ou rebater argumentos. Em Loja, o debate estabelece-se sempre relativamente a uma questão concreta, em relação à qual cada Mestre deve proceder à sua análise, dar a sua opinião, apresentar o seu entendimento da melhor forma de proceder. Cada Mestre intervém uma e só uma vez em cada debate. Não se interrompe ninguém (o único que pode fazê-lo, e unicamente para salvaguarda dos usos e costumes, leis e regulamentos maçónicos é precisamente o Orador - e esta situação só raramente ocorre). Cada Mestre só inicia a sua intervenção após estar terminada a intervenção anterior e depois de devidamente autorizado a fazê-lo pelo Venerável Mestre. Em caso algum se estabelece diálogo: cada Mestre fala para toda a Loja, não para uma pessoa em particular. Cada um dá a sua opinião sobre o tema, não gasta o seu latim e a paciência dos demais a refutar ou criticar outras opiniões anteriormente expressas: a assembleia é composta de homens inteligentes, que facilmente podem discernir que se A entende branco e B amarelo, B não concorda com A e tem uma opinião diversa dele - não vale a pena afirmá-lo expressamente. A mera expressão da fundamentação da sua opinião chega para mostrar a todos as concordâncias e discordâncias com intervenções anteriores. Em resumo, em Loja não se diz "não concordo com...", declara-se "o meu entendimento sobre o assunto em debate é este, por estas razões").

O Orador efetua o resumo do debate com o máximo de objetividade possível e coloca em relevo o sentir da Loja, o que resultou do debate. Ao fazer o resumo, o Orador evidencia se se verificou uma posição unânime, e em que sentido, se se manifestaram entendimentos diversos, mas um deles foi largamente maioritário, e qual, se há diversos entendimentos, sem que se tivesse destacado uma posição largamente maioritária, ou se o debate não foi conclusivo, por falta de elementos ou de opiniões consolidadas sobre a questão em análise.

Feito o resumo do debate, o Orador tira a sua conclusão, isto é, o parecer, a recomendação, que transmite ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar. A conclusão do debate tirada pelo Orador nada tem a ver com a posição pessoal que porventura tenha. Assinala se houve unanimidade ou, pelo menos, uma posição largamente maioritária - e, nesse caso, recomenda que o Venerável Mestre decida em conformidade com o sentido expresso pela Loja, sem necessidade de votação - ou indica as posições expressas que, não sendo evidente uma tendência largamente maioritária, devem ser colocadas à votação pela Loja. O enunciar dessas posições deve ser claro e inequívoco, para que a Loja, ao votar, saiba exatamente o que está em causa na escolha que vai fazer. Quando tal se justifique, seja por das intervenções ressaltar a falta de elementos suficientes para uma decisão devidamente fundamentada, seja por se notarem mais dúvidas do que certezas, o Orador deve recomendar o adiamento da decisão, sugerindo as diligências a efetuar para possibilitar, em devido tempo, uma decisão mais esclarecida.

Note-se que o Venerável Mestre não está obrigado a decidir em conformidade com as conclusões do Orador. Pode discordar e decidir em sentido diferente, formal ou substancialmente. É o Venerável Mestre aquele a quem a Loja delegou o exercício da autoridade. O Orador é - sempre - um colaborador, um auxiliar, do Venerável Mestre, nunca uma eminência parda que se lhe imponha. E isto mesmo até quando o Orador, no uso da sua competência de guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos, porventura chame a atenção do Venerável Mestre para uma infração ou falha que se esteja em vias de cometer. Ainda assim, o poder de decisão final é do Venerável Mestre e só do Venerável Mestre. Se errar, é ele quem erra e é ele que assume a responsabilidade do erro. Ao Orador compete avisar, não pretender sobrepor uma sua inexistente autoridade à única que vigora em Loja.

No final da sessão, após ter sido concedida a palavra a bem da Ordem ou da Loja (o que, em reuniões profanas corresponde ao "período depois da Ordem do Dia"...), o Orador tira as suas conclusões sobre a reunião. Não se trata aqui de sumariar as intervenções a bem da Ordem ou da Loja, porque estas, ou são meramente informativas ou, se carecerem de deliberação, são apenas introdutórias de um debate a efetuar em sessão futura. Trata-se de sumariar o que foi feito e deliberado na sessão. Este breve sumário, para além de evidenciar o trabalho realizado, facilita a tarefa do Secretário de elaboração da ata da sessão, a ser aprovada na reunião seguinte.

É também frequente que o Orador, nas suas conclusões finais, apresente uma (breve, muito breve) Prancha Traçada sobre um tema maçónico, preferentemente relacionado com o que se tratou na sessão em causa. Porém, tal NUNCA sucede quando na sessão tiver sido apresentada uma outra Prancha Traçada por um Mestre. Em cada sessão de Loja deve haver formação dos obreiros, deve ser apresentado, em contribuição para o trabalho de aperfeiçoamento dos obreiros, um trabalho, uma exposição, um estudo - em resumo, uma Prancha Traçada. É incumbência, dever, dos Mestres da Loja garantirem-no. Se o não fizerem, estão a prejudicar a aprendizagem e a integração dos Aprendizes e Companheiros e a própria evolução pessoal dos Mestres. Mas apenas deve ser apresentada e colocada à meditação da Loja uma única Prancha Traçada de Mestre. Mais do que isso, seria estabelecer a confusão. Um tema para meditação e estudo por sessão é o necessário e o suficiente. Assim, se nessa sessão, tiver sido apresentada por um Mestre uma Prancha Traçada, a conclusão final do Irmão Orador resumir-se-á ao sumário dos trabalhos (incluindo a referência a essa Prancha Traçada, obviamente). Se tal não tiver sucedido, incumbe ao Orador, Mestre que efetua a última intervenção formal antes do encerramento dos trabalhos, garantir que a Loja não fique sem matéria para estudo e meditação, através então de uma brevíssima Prancha Traçada, em que, mais do que ensinamentos ou proposições, deve levantar pistas para reflexão. Assim, ficam os trabalhos justos e perfeitos!

Rui Bandeira


21 novembro 2010

As elites e a curva de Gauss




Ao estudar a diversidade das populações, os matemáticos descobriram um facto curioso: muitas das populações, quando ordenadas por uma das sua dimensões - como o peso, a altura, ou mesmo a distância entre os olhos - distribuíam-se de acordo com uma curva em forma de sino, como a que pode ver-se na imagem que ilustra este texto. O ponto mais alto da curva corresponde ao valor médio, e as "pontas" correspondem aos valores que mais se afastam da média. No gráfico em causa, vemos a distribuição do QI (Quociente de Inteligência) de uma população. Sendo 100 o QI médio, vemos que podemos encontrar 68,2% (34,1 + 34,1) da população - mais de dois terços - entre os 85 e os 115. Entre os 70 e os 130 encontramos já 95,4% (13,6 + 34,1 + 34,1 + 13,6), o que significa que um pouco mais de 19 em cada 20 pessoas se encontram neste intervalo. Entre os 130 e os 145 encontramos 2,2% da população - tantos quantos encontramos entre os 55 e os 70. Mas é acima dos 145 (e abaixo dos 55...) que encontramos os grupos mais reduzidos: 0,1%. Um em cada mil. Os melhores - e os piores... - são sempre raros. Fácil é ser-se mediano. A este tipo de distribuição chama-se "distribuição normal", e a sua universalidade tem uma explicação matemática. Uma vez que o saber não ocupa lugar, e o conceito até é fácil de abarcar, vamos a ele.

Tomemos um dado de jogar: um cubo, com 6 faces, em cada uma das quais está inscrito um certo número de pintas: 1, 2, 3, 4, 5 ou 6. A probabilidade de cada face ficar por cima é igual para todas as faces. Suponhamos agora que lançamos o dado uma centena de vezes. é natural que "saia" cada um dos números o mesmo número de vezes - entre 16 e 17, uma vez que 100/6 = 16,666666. Até aqui, nada de novo.

As coisas começam, porém, a tornar-se interessantes se decidirmos lançar de cada vez não um mas dois dados, e registar a soma das pontuações. Podemos obter qualquer número de 2 a 12, inclusive, num total de 11 resultados diferentes, correspondentes respetivamente de um par de "uns" a um par de "seis". A probabilidade de se obter qualquer desses números é que não é igual. Senão, vejamos: para se obter "2" tem que se obter 1 no primeiro dado e 1 no segundo dado; não há outra forma. Já para se somar 3, podemos ter 1 no primeiro dado e 2 no segundo (1+2), ou 2 no primeiro dado e 1 no segundo (2+1). Pode, do mesmo modo, somar-se 4 com 1+3, 2+2 ou 3+1. A soma "7" pode ser obtida com 1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2 ou 6+1, ou seja, de seis formas distintas! Diz-se, por isso, que a probabilidade de obtermos "7" é 6 vezes maior do que a de obtermos "2". Se somarmos o número de formas que nos permitem obter um dado número, ficamos com:

Total de "2": 1 (1+1)
Total de "3": 2 (1+2, 2+1)
Total de "4": 3 (1+3, 2+2, 3+1)
Total de "5": 4 (1+4, 2+3, 3+2, 4+1)
Total de "6": 5 (1+5,2+4, 3+3, 4+2, 5+1)
Total de "7": 6 (1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2, 6+1)
Total de "8": 5 (2+6, 3+5, 4+4, 5+3, 6+2)
Total de "9": 4 (3+6, 4+5, 5+4, 6+3)
Total de "10": 3 (4+6, 5+5, 6+4)
Total de "11": 2 (5+6, 6+5)
Total de "12"": 1 (6+6)

Se lançarmos os dados cem vezes, é natural que obtenhamos a soma "7" cerca de seis vezes mais do que a soma "2". Os valores "2" e "12" são mais raros do que quaisquer dos restantes, ocorrendo em média uma vez em cada 36, enquanto que o valor "7" ocorrerá em média 6 vezes em cada 36, que é o mesmo que dizer 1 vez em cada 6. Os valores de "5" a "9", que são menos de metade dos números possíveis, acumulam entre si 24 em cada 36 lançamentos - ou seja, dois terços, ou quase 67%.

Se repetirmos o mesmo exercício com 3 dados, depois com 4, e por aí fora, ir-nos-emos aproximando sucessivamente de uma distribuição normal. É isto mesmo o que nos diz o "Teorema do Limite Central", de acordo com o qual "a soma de muitas variáveis aleatórias independentes e com mesma distribuição de probabilidade tende à distribuição normal".

Em qualquer população heterogénea há, incontornavelmente, quem se situe no topo, como sucede com a nata do leite que, rica em gordura, flutua sobre este, e donde vem a expressão "a nata da sociedade". Do francês - em que "crème" é, precisamente, a nata do leite - nos vem, precisamente, a expressão "la crème de la crème", que significa os melhores de entre os melhores. As elites, termo usado no século XVIII para nomear produtos de qualidade excepcional, viriam a constituir, por alargamento semântico do termo, grupos sociais superiores, tais como unidades militares de primeira linha ou os elementos mais altos da nobreza.

Quem tiver lido até aqui não estranhará, agora, ouvir-me dizer que as elites não são, no fundo, senão uma inevitabilidade matemática que tem na sua origem a própria diversidade humana. Se tomarmos como premissa que cada dimensão que procurarmos medir decorre de uma multiplicidade de fatores, podemos dizer que enquanto os homens forem diferentes haverá, para cada dimensão, uns grandes e outros pequenos, uns mais acima e outros mais abaixo, uns melhores e outros piores. As elites são, tão só, aqueles que se encontram junto ao limite superior da medida cujo critério tivermos estabelecido.

Paulo M.

17 novembro 2010

Diversidade


A Maçonaria é, por vezes, vista do exterior como uma instituição fechada, imutável, dotada de uma grande coesão, que atua em bloco. Esta visão não é, nem de perto, nem de longe, correta. Pelo contrário, a Maçonaria é dotada de uma invulgar diversidade, agrupando sob a mesma genérica denominação, realidades distintas, práticas diversas, entendimentos díspares. Em todos os aspetos, a começar logo pelas suas origens...

A maior parte dos estudiosos da Maçonaria considera que ela tem a sua origem nas corporações medievais de construtores em pedra, de catedrais, palácios, fortificações, etc.. Mas essas agremiações medievais, embora partilhando regras e costumes similares, tinham caraterísricas muito próprias e específicas, em função da sua localização geográfica. Só para falar das Ilhas Britânicas, a organização específica das Lojas Operativas inglesas diferia das escocesas, que por sua vez, tinham sensíveis diferenças das irlandesas. Em França, não se pode falar dos antecedentes históricos da Maçonaria sem referir a Compagnonage. As agremiações de construtores da Flandres tinham usos diversos das italianas e estas das teutónicas. Por isso, quando se afirma que a Maçonaria Especulativa moderna evoluiu da Maçonaria Operativa - afirmação que, pessoalmente, considero correta -, é bom que se tenha presente que esta evolução resulta de diferentes Tradições, não inteiramente díspares, mas também não totalmente semelhantes.

Mas, ainda no campo da origem da maçonaria, há aqueles que a situam nos Templários e respetiva Tradição. E aqueles que a fazem remontar aos Antigos Mistérios egípcios e ou mitraicos.

Só no tema das origens podemos detetar assinaláveis diferenças de entendimento, que conduzem a diversas posturas e práticas. É inevitável que haja diferenças de conceção, mais visíveis ou mais subtis, entre quem considera praticar algo que evoluiu das corporações medievais e quem acredita que a sua prática descende da tradição cavaleiresca religiosa e ainda quem considera a maçonaria herdeira dos herméticos mistérios da Antiguidade.

Mas a Maçonaria também assume estilos e práticas diversas em função dos grandes espaços em que se insere. Não é a mesma coisa falar-se da Maçonaria Americana e da Maçonaria Europeia Continental. Não é de todo a mesma a realidade da Maçonaria Inglesa e da Latinoamericana. Isto para não falar da diversidade asiática e da progressiva afirmação maçónica em África.

Mesmo dentro de cada bloco geográfico - diga-se assim - as Obediências Nacionais e as práticas maçónicas em cada país mostram-nos assinaláveis diferenças e visíveis variantes, designadamente em práticas rituais. Cada país tem uma discreta evolução própria, que, ao longo do tempo, adquire uma individualidade específica, também inerente às diversidades culturais dos diversos povos. Se se assistir a uma sessão de Loja em Itália, na Alemanha, em França, num país eslavo e em Portugal, ainda que em Lojas do mesmo rito - designadamente do Rito Escocês Antigo e Aceite - facilmente reconhecemos um ambiente comum, uma base partilhada, mas também diferenças, idiossincracias, práticas próprias.

Por outro lado, não olvidemos a transversal diferença existente entre a Maçonaria Regular e a Maçonaria Liberal, aquela trabalhando à glória do Grande Arquiteto do Universo e com os seus obreiros na busca de um aprofundamento espiritual, esta efetuando os seus trabalhos à glória do Homem e do seu aperfeiçoamento moral. Ambas têm a sua específica valia e ambas são - creio-o - necessárias. Mas as respetivas buscas são diferentes. Sem serem reciprocamente opostas, prosseguem caminhos diferentes, esta tendente a melhorar o relacionamento do Homem com a Sociedade e os diferentes grupos sociais, aquela trilhando a rota de uma espiritualidade baseada na Fé no UM universal, origem e reflexo de tudo e todos. Ambas as vias são - repito - respeitáveis e valiosas. Ambas têm assinaláveis pontos de contacto entre si, partilham aqui e ali caminhos e princípios e valores comuns. Ambas têm - sobretudo - a inestimável caraterística de integrarem homens que procuram ser melhores. Mas são intrinsecamente diferentes. Para os cultores de cada uma das vias, essa é a melhor. Intrinsecamente nenhuma é melhor do que a outra. Apenas diferentes.

Por outro lado ainda, a Maçonaria pratica-se em diferentes ritos, uns mais universais ou mais difundidos, outros mais seletos ou localizados. Sem preocupações de exaustão, podemos referir uma dezena de ritos hoje em dia praticados: Emulação, York, Escocês Antigo e Aceite, Escocês Retificado, Sueco, Brasileiro, Adonhiramita, Francês ou Moderno, Memphis-Misraim, Schröder. Cada um com simbologia própria ou diferente interpretação simbólica, ou diverso encadeamento do ensinamento. Todos diferentes. No entanto, cada maçom de um destes ritos, de visita a uma Loja de qualquer dos outros, reconhece ali Maçonaria...

Mesmo na mesma região, no mesmo país, na mesma Obediência, praticando o mesmo rito, cada Loja tem uma prática subtilmente diferente das demais. Tem a marca da sua individualidade, o resultado da sua evolução própria, a levemente diferente evolução de uma mesma matriz.

E, finalmente, dentro de cada Loja, que pratica o mesmo rito, que pertence a uma mesma Obediência, no mesmo país e na mesma região do globo... cada maçom é - inevitável e felizmente! - diferente do Irmão ao seu lado. Cada maçom tem a sua pessoal busca, a sua individual interpretação, o seu diferente caráter, a sua diversa história, o seu incomparável plano. Buscam todos o mesmo - o seu aperfeiçoamento -, utilizando o mesmo método, seguindo o mesmo rito, integrando-se no mesmo grupo. Mas, porque intrínseca e gloriosamente diferentes, não prosseguem todos o mesmo caminho, à mesma velocidade e não chegarão aos mesmos lugares. Embora naveguem à vista um dos outros. Embora se auxiliem e influenciem mutuamente. Cada um é um diferente maçom, ainda que na mesma maçonaria.

Quando se fala em Maçonaria, está-se na realidade falando de todas estas diversas maçonarias. Todas - mais ou menos - diferentes. Mas todas se incluindo no mesmo universal conceito de... Maçonaria.

Rui Bandeira

14 novembro 2010

A clivagem racial e cultural e o insucesso escolar


Li esta semana um artigo sobre o insucesso escolar dos negros nos EUA. E depois outro idêntico sobre o Reino Unido. Há anos que estes estudos vêm sendo feitos e refeitos e, não obstante a adoção de variadas estratégias com o propósito de mitigar as diferenças, chega-se sempre a resultados semelhantes: certos grupos raciais de estudantes obtêm piores notas e abandonam mais a escola do que outros. Estes estudos comparam frequentemente os resultados obtidos por crianças, adolescentes  e jovens oriundos de famílias do mesmo estrato sócio-económico - leia-se: habitando a mesma zona e frequentando as mesmas escolas, com pais com salários idênticos e idênticas habilitações.

É claro que, sempre que um estudo desta índole é feito, logo clamam vozes acusando-o de racista e discriminatório. Recordo que os factos não podem sê-lo, mas apenas, e eventualmente, a interpretação dos mesmos. Contudo, será difícil fazê-lo a estudos que constatem encontrar-se acima da média os estudantes de ascendência asiática, seguidos dos descendentes de judeus e de indianos, não obstante colocarem os de ascendência africana no fim da cauda. Os factos foram estes e, tendo sido recolhidos e tratados de acordo com as melhores práticas e normas da estatística, não serão passíveis de grande discussão. Já as tentativas da sua interpretação - e, especialmente, as medidas a tomar - levantam interessantes questões.

Uma das conclusões hoje em dia mais bem fundamentadas é a de que a questão não é de modo algum racial, mas cultural, e as suas raízes podem encontrar-se bem fundo na educação que as famílias dão às suas crianças desde o berço até que ingressam no sistema escolar. As expetativas dos pais para com os seus filhos por um lado, a forma como entendem o papel da escola por outro, condicionam o apoio - ou a falta dele - que as crianças receberão do seu núcleo familiar no sentido da obtenção de melhores resultados escolares.

É assim que, em famílias de ascendência asiática - em que o respeito quase reverencial para com os mais velhos é um valor cultural muito forte, e em que o trabalho e o esforço são entendidos como parte da normalidade da vida e como um caminho para o sucesso, o que leva os pais a andar "em cima dos filhos" para os fazer estudar e fazer os trabalhos de casa - as crianças têm, em média, dos melhores resultados escolares. Por oposição, famílias em que as crianças tratem os pais com displicência, passem o tempo livre a ver televisão ou na rua com os amigos, não se esforçando por obter bons resultados - e, mesmo, chamando a isso "to act white" (diríamos nós: "armar-se em branco") - não terão as mesmas alegrias na hora de assinar o boletim das notas.

Também importante é a diferente atitude  dos pais para com a escola e para com o seu próprio papel no sucesso escolar dos filhos. Enquanto que uns delegam por completo na escola todas as tarefas atinentes ao bom aproveitamento escolar, outros vêem a escola um parceiro sobre o qual não podem colocar todo o peso da educação da criança, e outros ainda, desconfiados da eficiência do sistema escolar, complementam-no das mais diversas formas, de explicações particulares a escolas de línguas, de música, de estudo acompanhado, sei lá... Certo, certo, é que será, essencialmente, o tipo de educação familiar o principal fator determinante para o sucesso escolar das crianças.

Por fim, não se pode generalizar: cada caso é um caso, cada criança é única, cada família é diferente. Pode, mesmo assim, tentar encontrar-se padrões, e tentar encontrar as causas dos problemas. Não basta, aqui, encontrar correlações: é mesmo necessário encontrar a causalidade.

Face a estas conclusões, que medidas se pode tomar? Aqui a questão torna-se, subitamente, muito mais delidada. Será que cabe ao Estado ensinar os pais a educar os filhos? Será o estilo de educação que cada um recebeu e transmite aos descendentes parte integrante da sua cultura? E sendo-o, poderá ou deverá o Estado dar orientações precisas no sentido de que as crianças - para bem destas últimas, entenda-se - devam ser educadas desta ou daquela maneira? Contra, eventualmente, a vontade dos pais? O respeito pela cultura de cada um, pela sua auto-determinação e, por fim, pela sua liberdade, não iriam colidir com tais hipotéticas medidas?

Esta questão, apesar de melindrosa, poderia perfeitamente ser discutida numa Loja como a Mestre Affonso Domingues. A questão levantada é filosófica, antropológica e, apesar de também política, não o é de forma partidária ou inevitavelmente conducente a divisões entre posições tomadas. Traz informação que é, certamente, útil a que cada um de nós entenda melhor o mundo que o rodeia, e ajudará, certamente, a combater preconceitos retrógrados. Estou certo de que qualquer opinião formulada seria no sentido de se dar prevalência ao respeito pela liberdade individual, que não haveria qualquer comentário racista - muito pelo contrário, e que seria salientado que a tolerância só faz sentido se houver diversidade. No fim, todos manifestariam agrado com o tema tratado, e cada um sairia com uma posição forçosamente diferente de todos os demais, mas enriquecida pela exposição a ideias diferentes daquelas que possuía.

Como vêem - e ao contrário do que dizem algumas vozes - há, numa Loja Maçónica, muito mais a discutir do que a cor dos aventais ou a decoração do templo.

Paulo M.

10 novembro 2010

O quarto Grão-Mestre


O quarto Grão-Mestre da GLLP/GLRP foi Alberto Trovão do Rosário. Exerceu o ofício entre 2004 e 2007.

Antes disso, tinha sido, em 2001, com José Manuel Anes, candidato ao exercício do ofício. Então, foi este quem foi eleito terceiro Grão-Mestre. Mas a divulgação das candidaturas a que então se procedeu mostrou a elevada qualidade de ambos os candidatos e José Manuel Anes soube interpretar bem o desejo que então se formou e designou Alberto Trovão do Rosário para o exercício do ofício de Vice-Grão-Mestre.

Trovão do Rosário colaborou assim no trabalho de normalização da vida da Grande Loja levado a cabo por José Manuel Anes e recebeu uma Grande Loja pacificada, em velocidade de cruzeiro, com a normalidade restabelecida.

Preocupado em preservar o rumo readquirido, Trovão do Rosário dirigiu a Grande Loja com particular prudência. Cada passo, cada iniciativa, era analisado e reanalisado, estudado e ponderado antes de ser dado ou de ser levado a cabo, por forma a garantir-se que não fosse um passo em falso, uma iniciativa falhada ou erradamente controversa. Esta prudência não foi bem vista pelos mais impacientes, que, com algum humor, não isento de carinho e respeito, brincavam com o nome do Grão-Mestre, apelidando-o de Travão do Rosário...

Mas provavelmente o quarto Grão-Mestre tinha e teve razão: há que deixar o tempo fazer o seu trabalho, que consolidar o que anteriormente foi abalado e reparado. A impaciência é generosa, o desejo de fazer é positivo, mas há um tempo para avançar e um para consolidar o progresso alcançado. O quarto Grão-Mestre considerou que o seu tempo era de consolidação - e a evolução futura deu-lhe razão! A melhor prova disso é o percurso bonançoso que a Grande Loja tem trilhado desde então.

Alberto Trovão do Rosário, professor universitário, foi e é um homem ponderado, de estudo, de organização e exposição do saber adquirido. Foi talvez esta a linha de força que deixou marcada na organização que dirigiu. O seu tempo foi de aprofundamento do que é, para que serve, a Maçonaria, foi de organização das nossas ideias. Para fazer este trabalho, é preciso sossego. Que não deve ser confundido com inércia...

Este blogue, em devido tempo, registou o pensamento do quarto Grão-Mestre, quando publicou, entre 30 de outubro e 20 de novembro de 2006, na íntegra, mas dividido em nove excertos, o seu artigo "A Actualidade da Maçonaria", originalmente publicado no boletim da Grande Loja, "O Aprendiz". Ainda hoje vale a pena reler este artigo. Ainda hoje tem as marcas da atualidade e da qualidade.

Alberto Trovão do Rosário não foi travão. Foi pausa, foi estudo, foi prudência. Foi o que era necessário na altura. E o seu trabalho possibilitou que o seu sucessor estabelecesse o seu rumo, sem receio de que o terreno da partida estivesse em falso. O vigor dos passos que se dá também depende da consolidação do terreno em que esses passos se dão... Hoje, quando o seu sucessor deu já por terminada a sua tarefa e novo elemento tomou as rédeas da Grande Loja, podemos com justiça afirmar que o tempo de consolidação proporcionado pelo quarto Grão-Mestre foi precioso.

Eis um excerto, retirado do sítio da Grande Loja, do percurso maçónico do quarto Grão-Mestre que, na vida profana, é Licenciado pelo Instituto Nacional de Educação Física, Doutorado, com Distinção, pela Universidade Técnica de Lisboa (Faculdade de Motricidade Humana) e assegurou uma bem sucedida carreira universitária.

Percurso Maçónico

  • Ex-Obreiro da RL Bocage, Obreiro da RL Santiago, Obreiro da RL Fraternidade, Obreiro da RL Pisani Burnay.
  • Nestas RRLL desempenhou todas as funções do quadro de Loja tendo sido VM da RL Santiago por duas vezes e sido VM da RL Pisani Burnay.
  • Ex-Grande Inspector (Rito de York).
  • Assistente do MR Grão-Mestre da GLLP/GLRP. Por inerência, foi membro do Grão-Mestrado.
  • Capelão do Capítulo «Mosteiro dos Jerónimos» (Arco Real).
  • Ilustre Mestre do Conselho da «Ordem de Santiago» (Graus Crípticos).
  • Generalíssimo da Comenda «D. Henrique o Navegador», integrada na Grande Comenda dos Cavaleiros Templários de Portugal, juntamente com as Ordens da Cruz Vermelha e de Malta.
  • Grande Prelado do Conclave «Henrique de Bourgogne» da Ordem Maçónica e Militar da Cruz Vermelha de Constantino e das Ordens anexas do Santo Sepulcro e de S. João Evangelista.
  • Supremo Magnus substituto da Societas Rosacruciana in Lusitania.
  • Membro do Shrine (Europa)
  • Membro do Shrine (Internacional).
  • Representante do GC dos MC do Arizona junto do GC de MR e E de Portugal.
  • Representante do GC dos GC do RAM do Arizona junto do Supremo Grande Capítulo do Arco Real de Portugal.
  • Foi Presidente da Comissão Científica do Iº Congresso da Maçonaria Regular.
  • Foi Vice-Presidente e Presidente da Direcção da associação profana Grande Loja Legal de Portugal.
  • Criador, com outros obreiros, da colecção «Cadernos Maçónicos», na RL Santiago, em 1997. Posteriormente, a publicação desta colecção prosseguiu na RL Astrolábio.
  • Autor de dezenas de pranchas, artigos e comunicações sobre temas maçónicos.
  • Autor, com NN Fernandes, do livro «Mozart e a Flauta Mágica - Espiritualidade, Música e Maçonaria.
Rui Bandeira

07 novembro 2010

Os símbolos em Maçonaria: o ensinar e o aprender


É conhecido que a maçonaria recorre extensivamente a símbolos como forma de transmissão do conhecimento. É evidente que esses símbolos terão algum significado. O que, todavia, é menos evidente, é que não há significados universalmente aceites ou impostos para os símbolos maçónicos. O que um interpreta de um modo, outro pode interpretar de modo diverso. Assim sendo, de que serve a simbologia na maçonaria? A que aproveita essa "plasticidade" nos significados dos símbolos? E como é que se pode usar os símbolos como meios de comunicação do seu significado subjacente, se esse significado pode variar de pessoa para pessoa?

Para o entendermos, temos que recuar no tempo. Bem antes da maçonaria especulativa ter surgido - o que sucedeu, oficialmente, em 1717 - já os maçons operativos se socorriam de símbolos para se recordarem dos ensinamentos que os seus mestres lhes haviam transmitido. De facto, muitos dos trabalhadores da pedra não sabiam ler nem escrever, pelo que se socorriam de pictogramas e representações de objetos para o efeito. Os símbolos não eram propriamente secretos; o seu significado - as técnicas a que os mesmos se referiam - é que era apenas revelado a alguns. A maçonaria especulativa veio a adotar esse método de transmissão de conhecimento. Assim, hoje como outrora, os símbolos são auxiliares de memória, instrumentos de suporte ao conhecimento, verdadeiras mnemónicas- diriamos hoje: são cábulas - que nos permitem recordar, evocar e especular.

Mas se o seu significado pode ser individualizado, como é que o conhecimento passa sem se perder, sem se desvanecer, sem se espraiar numa mar de semânticas? De forma muito simples: para tudo há um início, e o método consiste, precisamente, em dar a cada um os pontos de partida, sem estabelecer qualquer ponto de chegada... Assim, a um aprendiz é, desde logo, ensinado o significado comum de vários símbolos: o esquadro, o prumo, o nível, o mosaico bicolor do chão dos templos, a pedra bruta, a pedra polida, entre outros. É das poucas ocasiões que, em maçonaria, alguma coisa é verdadeiramente ensinada, e mesmo aí os significados gerais são dados com parcimónia de explicações e de forma sucinta e concisa. A cada um é dito, então, que deverá procurar interpretar cada símbolo de forma pessoal, podendo quer aplicar o significado original, quer levá-lo até onde o deseje. E é esse o trabalho do aprendiz: estudar os símbolos, construir um significado em torno dos mesmos, e aplicá-lo a si mesmo.

E como se mantém um denominador comum? Quando um maçon se refere ao prumo, os demais sabem que se refere à retidão moral, à integridade, à verticalidade de caráter - aquilo que ouviu quando, ainda aprendiz, lhe "apresentaram" os símbolos. Contudo, mais tarde cada um irá interiorizar a seu jeito o que estas palavras significam. O que será sinal de caráter para um poderá ser duvidoso para outro; a nenhum, porém, é imposto qualquer significado universal. E porquê? Porque, se a maçonaria se destina a tornar cada homem num homem melhor, deve fazê-lo dentro do absoluto respeito pela sua liberdade. Por isso se diz que em maçonaria tudo se aprende e nada se ensina, no sentido de que cada um deve procurar os seus próprios ensinamentos sem esperar que lhos facultem. Cada um deverá poder procurar, no mais íntimo de si, o que quer fazer dos princípios que lhe são transmitidos: se quer segui-los ou ignorá-los, quais aqueles a que vai dar maior preponderância, e até onde vai levar esse ânimo de se superar. E é por tudo isto que, sendo essa luta de cada homem consigo mesmo algo de mais único do que uma impressão digital, a liberdade individual de interpretação se impõe sobre qualquer eventual tentativa de normalização do significado dos símbolos.

Paulo M.

03 novembro 2010

Vencedor e... vencedor!


Quando decorreu o processo eleitoral para a eleição do terceiro Grão-Mestre, a GLLP/GLRP estava ainda em convalescença da cisão que abalara o mandato do segundo Grão-Mestre. Esse processo eleitoral teve uma diferença substancial em relação aos anteriores: enquanto, quer Fernando Teixeira, quer Luís Nandin de Carvalho tinham sido candidatos únicos, para a eleição do terceiro Grão-Mestre apresentaram-se dois candidatos: José Manuel Anes e Alberto Trovão do Rosário.

José Manuel Anes era bem conhecido. Fora um prestimoso colaborador de Luís Nandin de Carvalho e em boa parte também a ele se devera a manutenção do reconhecimento internacional, após a cisão. Alberto Trovão do Rosário, professor universitário, obreiro de uma Loja no distrito de Setúbal, era então menos conhecido, mas era-lhe reconhecida grande capacidade, profunda estatura cívica e intelectual e era ardentemente apoiado por alguns Irmãos que suportavam a sua candidatura.

Recentemente cicatrizada de uma cisão, a GLLP/GLRP e os seus obreiros não pretendiam propiciar condições para que uma outra viesse a ocorrer. As duas candidaturas preocuparam-se assim em atuar de forma a que nenhuma fagulha ativasse indesejável braseiro. Pela primeira vez havia disputa eleitoral, importava demonstrar que esse facto integrava a normalidade da vida institucional da Obediência. Sabia-se que alguém havia de vencer e alguém haveria de perder a eleição. Isso era normal e fazia parte do processo eleitoral. Importava que a aceitação do resultado eleitoral fosse consensual e não criasse risco de perturbações - já tínhamos tido a nossa conta delas!

A divulgação das candidaturas e seus projetos - aquilo a que vulgarmente se designa por campanha eleitoral... - decorreu de forma exemplar: cada candidatura elaborou os seus documentos, que foram divulgados e distribuídos pela estrutura da GLLP /GLRP, com rigorosa imparcialidade. Ambos os candidatos se deslocaram às Lojas para se apresentarem e com os obreiros das Lojas debater os respetivos projetos. Mas essas deslocações tiveram a particularidade de terem sido feitas em conjunto. Não houve campanhas eleitorais, houve a apresentação de projetos, em sadio confronto.

Dificilmente se poderia ter tomado melhor opção! O processo eleitoral decorreu em harmonia, sem incidentes, cada um apresentando as suas ideias e assistindo à apresentação das ideias do seu opositor. Tudo decorreu com elevação, em verdadeira fraternidade.

No decorrer desse processo, verificou-se que as bases, as Lojas e seus obreiros, apreciaram a forma como ambos os candidatos divulgaram os seus propósitos. Verificaram que tinham perante si dois verdadeiros potenciais Grão-Mestres. Sabiam que só um seria eleito. Mas demonstravam o seu apreço por ambos. Consensualmente, a ideia surgiu, a sugestão foi verbalizada, o apelo foi feito, a opinião, Loja a Loja, coletivamente foi formada: um dos dois candidatos seria eleito, mas ambos eram merecedores de o ser. Então, sendo inevitável que houvesse um eleito e um não eleito, havia que proceder da forma que melhor se pudesse reconhecer esse mérito de ambos os candidatos. Loja a Loja, a mensagem que os candidatos ouviram afinava pelo mesmo diapasão: o candidato eleito Grão-Mestre deveria designar o outro candidato Vice-Grão-Mestre!

Talvez inicialmente não fosse essa a ideia dos candidatos. Mas o pulsar da Obediência era inequívoco.

E assim foi feito! Apurados os resultados da eleição, verificou-se que fora eleito para terceiro Grão-Mestre José Manuel Anes. Não se soube - está definido que não se saiba! - se a sua eleição ocorreu com grande ou pequena vantagem. Não houve elementos quantitativos a deslustrar a valia qualitativa de ambos os candidatos. E o Grão-Mestre eleito designou como Vice-Grão-Mestre o seu opositor na eleição!

Alberto Trovão do Rosário foi assim designado Vice-Grão-Mestre, com toda a legitimidade, com todo o peso institucional que a exemplar atuação de ambos os candidatos na eleição permitiram que lhe fosse conferido.

E foi assim que, de uma assentada, a GLLP/GLRP, recentemente cicatrizada a ferida da cisão, elegeu, não um, mas dois Grão-Mestres! Porque logo então se percebeu que, salvo qualquer anormalidade, não se tinha eleito apenas o terceiro Grão-Mestre: também se tinha escolhido o seu sucessor!

Rui Bandeira

01 novembro 2010

A liberdade na interpretação da simbologia maçónica


Magritte pintou, entre 1928 e 1929, um célebre quadro em que representa um cachimbo sob o qual escreveu "Ceci n'est pas une pipe." ou, em português,  "Isto não é um cachimbo". De facto, a pintura não é um cachimbo, mas a imagem de um cachimbo - e transmitir essa ideia era o intuito de Magritte. "O famoso cachimbo", viria ele a confessar, "Quanto me censuraram por causa dele! E porém, alguém poderia encher o meu cachimbo? Não, pois é só uma representação, não é verdade? Por isso, tivesse eu escrito no meu quadro «Isto é um cachimbo», estaria a mentir."

Um símbolo - do grego σύμβολον (sýmbolon) - pode ser um objeto, uma imagem, uma palavra, um som ou uma marca particular que represente algo diferente por associação, semelhança ou conceção. Deste modo, pode substituir-se um conceito complexo por um símbolo simples. O significante é evidente - constitui o símbolo em si mesmo; contudo, o seu significado pode ser obtuso, ou mesmo variável com o tempo, pois reside naquele que o descodifica, e cada um acaba por fazê-lo de forma pelo menos ligeiramente diferente dos demais. Por isto, é quase certo que, uma vez estabelecidos, os símbolos "adquiram vida própria", alterando-se o seu significado com o passar do tempo. Por exemplo, a Estrela de David é um símbolo que começando por constituir - de acordo com a tradição judaica - uma marca aposta nos escudos com que os guerreiros do rei David se protegiam, adquiriu, a partir de certa altura, um caráter místico, passando a ser gravado como amuleto ou proteção, e acabando por ser adotada como símbolo do Estado de Israel.

Não pode falar-se de simbolismo maçónico sem citar a velha definição de maçonaria: "É um sistema de moral velado por alegorias e ilustrado por símbolos". De facto, a maioria dos símbolos usados em maçonaria é evocativa dos princípios morais com que a maçonaria se identifica. O importante são os princípios; os símbolos são apenas os meios usados para que não os esqueçamos. E, uma vez que cada um recorda de forma diferente, e interioriza o princípio de forma única e pessoal - pois que único, individual e irrepetível é cada indivíduo e a sua experiência de vida - seria um exercício de futilidade tentar-se exigir que o significado dos símbolos fosse sempre o mesmo para todos. De facto, nem tal seria proveitoso.

Uma das frequentes utilizações dos símbolos é como oportunidade e meio de auto-análise - e também por isso se diz da maçonaria ser especulativa - que permita a cada um determinar as suas próprias "asperezas" no sentido de as "polir". Sendo as "rugosidades do espírito" diferentes de pessoa para pessoa - apesar da universalidade dos princípios, que podem aplicar-se a todos - cada um vê, sente e aplica o princípio a si mesmo de forma distinta da de todos os demais. Cada um pode, então, especulando, dar ao símbolo os significados que entenda, pois o símbolo é meramente instrumental - não tem nada de sagrado ou de "conspurcável" com este processo - para além de que atribuir novos significados a um símbolo não implica a perda dos significados mais convencionais, pelo que o diálogo sobre os mesmos continua a ser possível.

Dou-vos um exemplo que se passou comigo. Diz-se das lojas maçónicas serem "Lojas de S. João". Mas de qual? A resposta convencional é dizer-se que de dois: de João Batista - conhecido pela sua retidão e verticalidade, implacável consigo mesmo e com os outros, a ponto de fazer com que lhe cortassem a cabeça - e de João Evangelista - apóstolo do amor, cultor da fraternidade, e promotor da tolerância. Ambos se celebram por volta dos solstícios - João Evangelista no de Verão, João Batista no de Inverno. Isto são as premissas. Os princípios a transmitir são os que foram expostos: o da retidão e verticalidade de espírito por um lado, e o do amor fraterno pelo outro. Estes significados são mais ou menos universais na maçonaria. Há quem refira, ainda, que os raios de sol no solstício de Verão estão no seu ponto mais próximo da vertical, e no solstício de Inverno no seu ponto mais próximo da horizontal. Partindo desta pista, ávido de explorar estes símbolos e de fazer boa figura ao apresentar a respetiva prancha, o aprendiz que eu era então não se ficou por aqui; procurou especular mais ainda. Notou que João Batista - o da Verticalidade - era celebrado por entre uma Luz predominantemente horizontal, e que João Evangelista - o do amor fraterno entre pares - o era quando a Luz Solar era mais vertical. Conclusão? "Devemos ser equilibrados e equilibrantes: retos e justos quando à nossa volta todos falem de fraternidade e tolerância, e tolerantes e fraternos quando insistam na aplicação dos princípios de forma implacável."

São um significado e uma conclusão com alguma lógica? São - pelo menos, do meu ponto de vista. É um significado universalmente reconhecido? Não. E está certo? Ou está errado? Bom... para mim, parece-me certo, na medida em que foi instrumental para que aplicasse a mim mesmo os princípios referidos de forma mais eficaz. Para outros não resultará. Os símbolos são isso mesmo: instrumentos, meios, meras ferramentas coadjuvantes na prossecução de um objetivo maior. Aqui posso dizer: se da "adulteração" do significado "puro" e "convencional" do símbolo resultou  a melhor aplicação do princípio à minha vida tornando-me numa pessoa melhor, então - porque a ninguém prejudica o meu entendimento peculiar deste símbolo - o exercício foi profícuo. Se, para além disso, a alguém aproveitou para além de mim, então dou-me por muito satisfeito...

Paulo M.

28 outubro 2010

O 1º dia como Venerável Mestre


Caros Leitores

Ser Venerável Mestre de uma loja é, em si, um motivo de orgulho, já que significa que os restantes Irmãos da Loja nos aceitam e nos confiam a orientação da Loja, durante um Veneralato; ser Venerável da Respeitável Loja Mestre Affonso Domingues é, em meu entender, mais do que isso. Vejamos:

  • A RLMAD é uma das mais antigas Lojas que integram a GLLP/GLRP.
  • A RLMAD é uma das Lojas mais activas, tendo sido pioneira em muitos aspectos, dos quais a presença activa na Internet constitui um excelente exemplo
  • A RLMAD é uma Loja de referência, dado o rigor e dedicação com que se envolve em tudo. Como exemplo deste facto, pode-se destacar um determinado período da sua vida em que era a única Loja a fazer iniciações.
  • Na RLMAD, discutem-se forte e veementemente todos os assuntos, sendo que essas discussões são sempre balizadas pelo forte sentimento de tolerância e amizade que une os Irmãos
  • ...
Face ao acima exposto, creio que fica claro que assumir o Veneralato nesta Loja, trás consigo um forte "receio de não estar à altura", mas também um desejo enorme de que, no final, os Irmãos considerem ter valido a pena. Sinto-me simultâneamente um bafejado pela sorte e alguém a quem foi confiada uma tarefa na qual falhar não é uma opção.

Acresce que existe sempre uma tendência para fazer comparações e o anterior Venerável foi extraordinário na forma como conduziu os trabalhos da Loja; se não fosse o receio de com isso poder ser injusto com outros Veneráveis, arriscaria a dizer que considero este, um dos melhores Veneralatos da história da Loja. Fica aqui a minha homenagem ao I:. Rui L:., pelo excelente trabalho que desenvolveu, bem como um sentimento de tranquilidade, por poder contar com ele como meu conselheiro.

Como é que se resolve o problema da comparação??? trabalhando muito todos os dias, buscando levar a Loja ainda mais alto, usando como alicerces, tudo o que os anteriores Veneráveis "plantaram". Para todos eles, o meu Muito Obrigado e para mim, Mãos à obra...

O Vigésimo Primeiro Veneravel Mestre

Tem o cronista, para o efeito eu próprio, que começar por pedir desculpa por em tempo devido nao ter anunciado a eleição do ora empossado Veneravel Mestre da Loja Mestre Affonso Domingues.

Na sessão de 27 de Outubro, foi instalado o Irmão A.Jorge, ele também cronista deste blog e editor do sitio internet da loja. Nao foi por isso que foi eleito e instalado, foi mais porque durante 12 anos, tempo que intervalou a sua iniciação em Outubro de 1998 e a sua Instalaçao como VM, progrediu desempenhou quase todos os cargos de Loja, aprendeu, ensinou, trabalhou.

A sua instalação é um corolário da sua disponibilidade para com a Loja. Dele esperamos trabalho, e progresso, serenidade e seriedade.

Para mim, que ha 12 anos atrás assinei a sua ficha de candidatura, assumindo-me como proponente, foi um privilégio enorme poder ser o Mestre Instalador.

Da Loja, sabe ele já que receberá tudo o que houver para dar, A Loja ao escolhe-lo sabe bem que o espremerá para que dê tudo o que tem para dar.

É assim na Affonso Domingues, e nós gostamos.


José Ruah

27 outubro 2010

Regra particular


Cada agrupamento humano institui as regras que lhe convêm. Por vezes, uma instituição adota uma regra que normalmente não é adotada, que muitas outras não consideram boa - mas que se revela adequada à instituição que a adota, em função das suas particularidades.

Na GLLP/GLRP, desde a sua fundação, vigora uma regra que não é comummente adotada - e que não creio que fosse saudável a sua adoção generalizada. Essa regra postula que, no processo eleitoral para a eleição do Grão-Mestre, efetuada a votação e contados os votos, apenas seja divulgado quem foi eleito Grão Mestre, não se divulgando o concreto resultado quantitativo da eleição - isto é, o número de votos recebido por cada candidato. Mais, os elementos que integram a assembleia de apuramento dos resultados - composta pela Comissão Eleitoral e pelos candidatos ou seus representantes - ficam obrigados a rigoroso dever de sigilo quanto a esse resultado quantitativo.

Esta regra evidentemente não é adequada para a generalidade dos casos. Na maior parte das eleições, a exigência de transparência impõe que sejam pormenorizadamente divulgados os resultados apurados. Porquê então esta regra, neste particular caso? Porquê a falta de preocupação com a transparência?

A resposta está em que, por um lado, a necessidade de zelar pela transparência é aqui reduzida e, por outro, um outro valor se procura defender.

A necessidade de transparência é neste caso reduzida, atento o universo de votantes e de interessados. Votam para Grão-Mestre todos os Mestres da GLLP/GLRP. Ser Mestre Maçom pressupõe uma elevação ética, a ser constantemente exercida, que impede que haja fraude eleitoral. Mais: que torna impensável a possibilidade de fraude eleitoral. A genuinidade e honestidade do processo - e a fiscalização do seu decorrer - está garantida pelo respeito que merece a Comissão Eleitoral e a confiança que todos depositam na sua imparcialidade, além de, obviamente, o apuramento dos resultados ocorrer na presença e sob fiscalização dos candidatos ou seus representantes. Todos sabem que o candidato que for anunciado como tendo sido eleito é aquele que, sem margem para dúvidas ou suspeitas, recolheu mais votos. Isso é ponto assente!

Assim sendo, a divulgação quantitativa dos resultados apenas serviria para satisfazer a curiosidade. A não divulgação quantitativa dos resultados protege um outro valor: a imagem, a valia, o potencial futuro do ou dos candidatos derrotados! Pouco importa a dimensão da vitória do candidato escolhido. Não esqueçamos que a dimensão da vitória do escolhido é diretamente proporcional à dimensão da derrota do ou dos preteridos...

O processo de votação para eleição de Grão-Mestre potencia probabilidades de existência de resultados desnivelados. Todos os Mestres dispõem de um voto, mas o voto é exercido pelos Mestres nas suas Lojas, em sessões especificamente convocadas para a eleição. O forte cimento que liga os obreiros de uma Loja entre si, o hábito da busca e obtenção de consensos, potencia as possibilidades de cada Loja ter votações muito fortes, quiçá unânimes, ou quase, no candidato em relação ao qual na Loja se gerou consenso no sentido do seu apoio. Isto gera a tendência de - salvo quando haja porventura significativa divisão entre Lojas quanto à escolha do candidato a eleger - para que o resultado quantitativo seja uma votação muito significativa, quiçá esmagadora, no candidato eleito.

E, no entanto, a significativamente menor expressão eleitoral do ou dos candidatos derrotados não implica a sua menor valia. Sobretudo, não implica que não seja ou sejam capazes ou merecedores para exercer o ofício de Grão-Mestre. Significa apenas que, naquele particular momento, a escolha recaiu noutro. Tão só.

Ao não se divulgar resultados quantitativos, protege-se a igualdade qualitativa dos candidatos. A votação não escolheu um em detrimento de outro ou de outros porque aquele era bom e este ou estes eram maus. Escolheu-se de entre vários Irmãos a quem foi reconhecida capacidade para o exercício do cargo - e por isso beneficiaram da proposta de vários Mestres - um para o exercer. Aquele que, naquele momento, se entendeu ser o que teria condições para melhor exercer a função. Tão só. O que não quer dizer que, na eleição seguinte, o ou um dos derrotados desta eleição não possa vir a recolher o apoio para ser, por sua vez e então, eleito.

Ter sido candidato derrotado não inviabiliza ou dificulta eleição posterior. Mas ter sido candidato copiosamente derrotado pode dificultar muito essa possibilidade e, quiçá injustamente, quiçá com prejuízo para a instituição, liquidar as possibilidades futuras de eleição de um bom candidato que, em determinado momento, defrontou e perdeu perante outro que foi então considerado mais bem colocado para exercer o ofício, em detrimento de, possivelmente, um menos bom candidato que beneficiaria de não ter sofrido anteriormente copiosa derrota... apenas porque não se apresentou à eleição.

Em eleições maçónicas, não há vencedores nem vencidos. Há apenas os que são escolhidos e os que, naquele momento, o não são. Aquele que foi preterido numa escolha eleitoral não deve ficar, de forma alguma, diminuído para o futuro. Essa preterição não significa que não tenha capacidade ou merecimento para o exercício da função. Significa apenas que, naquele momento concreto, se entendeu haver outro um pouco mais bem qualificado ou um pouco mais merecedor de a exercer. E a diferença de valia, naquele momento, entre ambos, pode ser muitíssimo menor, do que a expressão eleitoral quantitativa resultante de uma votação.

Não é comum, sabemos, esta regra. Mas é uma regra que protege e salvaguarda os preteridos numa votação, mantendo incólumes as suas possibilidades no futuro. E isso já sucedeu! Já foi eleito um candidato que, na eleição anterior, tinha sido preterido em favor de outrem. Sem problemas: a generalidade dos votantes não sabia se, nessa eleição, fora preterido por curta margem ou copiosamente batido na escolha. A eleição subsequente não foi, assim, perturbada por um elemento que - manifestamente - não fez falta nenhum para a escolha então efetuada.

Esta regra que mantemos entre nós, na GLLP/GLRP, não é - sabemo-lo bem - suscetível de ser comummente aplicada. Mas atrevo-me a pensar que o mundo será um pouco melhor se e quando puder sê-lo, sem problemas...

Rui Bandeira

24 outubro 2010

A interpretação e significado dos símbolos maçónicos


Hermann Rorschach foi um psiquiatra suiço que viveu entre 1884 e 1922, e que ficou conhecido pelo seu trabalho sobre o significado psicológico de interpretações dadas a manchas de tinta, tendo desenvolvido para isso uma técnica que tomou seu nome: o teste de Rorschach. Este teste baseia-se na chamada "hipótese projetiva", de acordo com a qual a pessoa a ser testada, ao procurar organizar uma informação ambígua (ou seja, sem um significado claro, como as pranchas do teste de Rorschach), projeta aspectos da sua própria personalidade. O intérprete (ou seja, o psicólogo que aplica o teste) teria assim a possibilidade de reconstruir os aspectos da personalidade que teriam levado às respostas dadas. Dito de outro modo: confrontado com um objeto sem um significado previamente estabelecido, o sujeito atribui-lhe uma conotação, uma semântica, um sentido que decorre, essencialmente, de si mesmo, não tendo que ser - e frequentemente não sendo - uniformes e invariáveis os significados atribuídos de um sujeito para outro.

Algo de semelhante sucede na maçonaria com os símbolos. Há símbolos a que se atribui significados convencionados - como o esquadro que, servindo para traçar ângulos retos, evoca a retidão de caráter - o que não impede que lhes sejam atribuídos outros significados. Outros símbolos traduzem uma maior diversidade de sentidos - como o G que a maçonaria regular coloca entre o esquadro e o compasso. Símbolos mais obscuros, menos frequentes e de menor universalidade são por vezes encontrados num contexto maçónico, mas poderão ser  apenas percetíveis e utilizados num determinado contexto cultural, no âmbito de certo rito, ou confinados a um perímetro geográfico específico. Contrariamente ao teste de Rorschach, todavia, o recurso à simbologia pela maçonaria não tem o fim de constituir qualquer análise psicológica ou psiquiátrica por um terceiro, mas apenas de cada um por si mesmo.

A simbologia maçónica - que tem como tema dominante a maçonaria operativa medieval, a que hoje chamaríamos arquitetura ou engenharia civil - tem o triplo propósito de estabelecer uma estrutura e um  contexto cultural para os arquétipos universais que identificam a maçonaria, uma forma sintética de comunicação de conceitos, e uma cultura de heterogeneidade e tolerância. Cada símbolo maçónico - normalmente coisas tão banais como uma pedra ou uma colher de pedreiro - evoca um ou mais significados que, no seu conjunto, constituem uma matriz semântica que dota a Ordem de um contexto cultural que, por sua vez, enquadra e dá corpo aos conceitos e princípios que a maçonaria pretende transmitir, propagar e perpetuar. Fica assim estabelecida, em torno dos símbolos, uma linguagem que, de forma sintética, permite a rápida e eficaz evocação, relacionamento e comunicação de conceitos, bastando por vezes uma simples palavra para transmitir um conceito complexo no seu contexto adequado. Por fim, ao não fazer corresponder de forma imposta, rígida e imutável os símbolos aos conceitos, a simbologia maçónica permite que cada maçon atinja as sua próprias respostas às importantes questões filosóficas que a vida coloca.

Contudo - e isto é a minha interpretação pessoal, que vale o que vale - a maior virtude do recurso à simbologia e à alegoria consiste no distanciamento que estabelece entre os princípios e a sua aplicação. Este distanciamento possibilita que a interiorização dos conceitos decorra da sua aplicação a um sujeito abstrato (e, mesmo, claramente do foro do mítico e do imaginário), e que só uma vez absorvida a sua essência e apercebidas as consequências da sua incorporação no edifício ético e moral individual - o que pode levar mais ou menos tempo, ou nunca suceder de todo - cada um aplique então a si mesmo o significado pessoal e personalizado que atribuiu ao símbolo, interiorizando-o e consolidando-o da forma que entende ser a que mais se adequa à sua própria realidade e, por fim - porque, em maçonaria, nada se ensina mas tudo se aprende - tire partido da lição que deu a si mesmo.


Paulo M.

20 outubro 2010

A Maçonaria nos dias de hoje


A Maçonaria teve historicamente o seu auge, em termos quantitativos, após o final da Segunda Guerra Mundial. Tinham-se vivido anos de horror e de violência inauditos. Os sobreviventes dos combatentes no conflito necessitavam de manter a camaradagem, a união, o espírito de corpo, que sentiam ter possibilitado a sua sobrevivência. Uma das formas que, sobretudo nos países anglossaxónicos, acharam para o fazer foi buscar a admissão nas Lojas maçónicas e aí praticarem essa particular forma de camaradagem que inexoravelmente os marcou. Por outro lado, os horrores vividos e assistidos mostraram a muitos e muitos a necessidade de um espaço de convivência sã e de aprimoramento ético. Quem conviveu com o mal aprecia mais plenamente o bem!

O pós Segunda Guerra Mundial foi assim um período de grande florescimento da Maçonaria, em que os números dos maçons cresceram até atingirem níveis nunca antes historicamente atingidos.

Mas a vida é feita de ciclos! A essa fase de crescimento seguiu-se - inexoravelmente - uma fase de declínio. As condições sociais mudaram. A prosperidade material foi desfrutada por mais gente. As gerações sucederam-se. O que foi vivido no tempo daquela guerra passou a ser mera matéria de documentário histórico para os filhos, netos e bisnetos da geração que vivera aquele tempo. O que fora importante para a geração do pós-guerra não era já entendido nem sentido como tal pelas gerações subsequentes - e, bem vistas as coisas, ainda bem que as gerações subsequentes tiveram a possibilidade de não viver, nem sentir, nem suportar, aqueles duros tempos! Outras solicitações sociais e de utilização de tempos livres se perfilavam. E a Maçonaria, em termos quantitativos, declinou sensivelmente. Passou a ser vista como uma coisa de cotas nostálgicos e ultrapassados e de cromos com a mania de se armarem em diferentes. Tantas coisas para fazer na vida, tanta vida para viver, tanto trabalho para fazer, tanto para conquistar - para quê gastar (ou perder) tempo com essa coisa esquisita, meio desconhecida, fechada? Com a escolaridade a aumentar exponencialmente, quando os jovens passavam anos e anos a preparar-se para a vida ativa e esta era cada vez mais competitiva, que esquisitice era essa do autoaperfeiçoamento? Não era evidente que cada geração era melhor, mais sabedora, mais dinâmica, mais apta, do que a anterior? A Maçonaria não passava, para muitos, de um resto do passado, em vias de fossilização, em persistente declínio, precursor da inevitável decadência e do inexorável arquivamento nas prateleiras das curiosidades da história! A vida moderna, a tecnologia, o progresso imparável, o céu que é o limite do pujante avanço da Humanidade, relegavam a vetusta organização para a sala dos fundos onde as relíquias do passado acumulavam respeitável poeira...

Mas os ciclos inexoravelmente avançam, as suas fases sucedem-se e, nunca se repetindo exatamente da mesma forma, as grandes tendências inevitavelmente que paulatinamente se repetem. Este início do século XXI parece mostrar-nos uma mudança de ciclo da Maçonaria, em que o declínio cessou e o crescimento recomeça.

A vida moderna insensivelmente empurra-nos para a massificação, a generalização. Cada vez mais, cada um de nós é menos um indivíduo e mais um número, um fator, um pequeno elemento de um conjunto cada vez mais numeroso. E cada vez mais descobrem que a Maçonaria permite aos que a integram dispor de um espaço, de tempo e de locais em que cada um consegue afastar essa asfixiante sensação de ser apenas uma peça de um imenso formigueiro humano e assumir-se como indivíduo inserido numa comunidade e com ela e os seus outros componentes interagindo. Volta a "estar em alta" no "mercado" dos valores pessoais e sociais a necessidade de ética, a vontade de aperfeiçoamento, a interação com pequenos grupos de pares, com interesses e objetivos similares.

Cada um de nós sente que, por si só, não consegue deixar de ser apenas um número, inseto numa colmeia, peça de uma imensa máquina que é a sociedade de hoje. Mas verifica que, inserida num grupo com dimensão humana, em que todos se conhecem e se podem conhecer, a individualidade de cada um tem significado e é reconhecida nesse grupo com dimensão humana. E que, inserido nesse grupo, os progressos de cada um são reconhecidos pelos demais, tal como cada um reconhece os progressos dos demais. Ser um parafuso bem polido num depósito de milhões de parafusos é irrelevante. Mas ser uma pessoa, um indivíduo, com virtudes a cultivar, com defeitos a combater, com arestas a polir, no meio de iguais, também com virtudes e defeitos e arestas, mas sobretudo sendo cada um UM, diferente entre iguais - isso é gratificantemente diferente!

Nos dias de hoje, a Maçonaria é uma ancestral instituição que - como é caraterístico das instituições verdadeiramente relevantes e duradouras - se reinventa para responder aos desafios e às necessidades de agora. E hoje é necessário - cada vez mais urgentemente necessário! - que a vetusta instituição da Maçonaria disponibilize a quem disso cada vez mais necessita o tempo, o espaço, o meio, as ferramentas, para que o homem-número que o progresso que trilhámos criou se transforme no Homem Completo que cada um de nós tem a potencialidade de ser. Único. No melhor e no pior. Cada vez com mais melhor e menos pior. Mas sobretudo Homem - imprescindivelmente diferente entre iguais.

Tempo virá em que novo declínio experimentará a Maçonaria, em que os nossos filhos, ou netos, ou bisnetos, de forma geral a verão de novo como coisa do passado. Não é esse o tempo que vivemos. O tempo de agora é de crescimento, de consolidação, de valorização. Porque os Valores que recebemos dos nossos antecessores e que cultivamos para transmitir aos vindouros são intemporais, essenciais e imprescindíveis para o Homem e para a Humanidade.

Curiosamente, a imutável linha de rumo da Maçonaria parece atuar como força de equilíbrio na Sociedade. No passado, quando imperava a desigualdade, a Maçonaria foi um espaço de igualdade. Hoje, quando a normalização impera ao ponto de asfixiantemente nos sentirmos números num conjunto, formigas cumprindo desconhecida missão do formigueiro, obreiras mecanicamente contribuindo para a manutenção e crescimento da Grande Colmeia social em que nos sentimos aprisionados, a Maçonaria possibilita a cada um dos seus elementos que exercite, execute, desenvolva, a sua individualidade. O combate de há trezentos anos era o de convencer a sociedade inteira da igualdade essencial dos seus membros. Hoje, o desafio é o de consciencializar todos de que essa igualdade só se concretiza verdadeiramente se for permitido a cada um desenvolver a sua individualidade. Porque cada um de nós é verdadeiramente único e diferente entre iguais. E é essa Diferença na Igualdade que, afinal, constitui a maior riqueza de uma sociedade.

As épocas sucedem-se, as modas vêm e vão, os tempos mudam - mas os Valores essenciais, esses, são perenes e cultivá-los com são equilíbrio é Arte verdadeiramente Real!

Rui Bandeira

18 outubro 2010

Como se pode - ou não - falar de religião em loja


A proibição de discussão religiosa em loja é assunto reiteradamente debatido. Não há, todavia, como o exemplo para ilustrar o princípio. Quando procurava uma ocorrência - real ou fictícia - que não soasse forçada, recebo um simpático cumprimento feito por um leitor aqui num dos comentários: "Que o Senhor lhe conceda discernimento para encontrar a verdade que liberta e está em Cristo Jesus!". Nem de propósito. Este cumprimento, feito sem qualquer dúvida com a melhor das intenções, consubstancia, precisamente, o tipo de discurso que, apesar de socialmente admissível fora de loja, não o é numa loja maçónica.

Mas porque é que um simples cumprimento como este - que até é auspicioso, traduzindo os desejos de que suceda ao seu destinatário uma coisa que o emissor tem por positiva - não é admissível em loja? Vejamos com mais atenção o que se diz. "Que o Senhor"... Até este início insuspeito pode gerar controvérsia; se, por exemplo, se pertencer a uma religião que denomine a Divindade de uma outra forma, é quanto basta para que se sinta a expressão como estranha. Nesse sentido, não é difícil imaginar uma situação em que alguém interprete isto como sinónimo de "que o meu Deus - que não é o teu - te conceda isto e aquilo". "... a verdade que liberta ...", esta sim, é uma  quase certa fonte de discórdia, por causa da sua mais pequena palavra: "a". Referir-se "a" verdade que liberta, especialmente junto de um nome comummente associado a certa religião, implica ser esta verdade algo de único, que não há outra, e que muito menos há várias. Referirmos a existência de um único caminho certo implica que quem não o percorra estará a ir... por caminhos errados - o que é contrário à ideia de que cada um deva sentir ser respeitadas as suas crenças de forma que não haja preponderância de quaisquer outras sobre estas - ou destas sobre quaisquer outras. Isto faz-nos chegar à última parte: "... e está em Cristo Jesus". Se a todas as outras fórmulas se poderia, eventualmente, fazer "vista grossa" quando utilizadas em loja, esta última não é, de todo, passível de ser aceite, por ser indiscutivelmente própria de uma religião, e por isso sentida como estranha por quem professe uma fé diversa.

Cada religião tem uma terminologia própria para referir a(s) divindade(s) a quem presta culto. Forçar seguidores de várias crenças a utilizar a terminologia de uma delas seria algo de muito pouco paritário. Para ultrapassar esta dificuldade, a maçonaria decidiu adotar uma nomenclatura própria, alheia a qualquer crença ou religião - e por isso equidistante de todas estas - para designar a Divindade. Assim, em vez de um dizer Elohim, outro Deus e outro Jesus Cristo; em vez de invocar Allah ou Jeová, Krishna ou Zoroastro, Thor, Zeus - ou a Divindade por qualquer outro nome - os maçons dizem "Grande Arquiteto do Universo". Essa expressão designa não um qualquer "deus maçónico" - pois tal não existe - mas constitui apenas um mesmo nome através do qual  todos os maçons se referem cada um ao seu próprio Deus.

De fora fica também, evidentemente, tudo o que é próprio desta ou daquela religião. Não faria sentido dizer-se "invoquemos Maria, mãe do Grande Arquiteto do Universo", ou "O Grande Arquitecto do Universo é grande, e Mohammed é o seu profeta". Assim, em loja, apenas nos referimos ao "Grande Arquiteto do Universo". As pranchas maçónicas - na maçonaria regular - começam sempre: "À G.·.D.·.G.·.A.·.D.·.U.·. ", uma vez que todo o trabalho é feito "À Glória Do Grande Arquiteto Do Universo". Cada um dedica o trabalho que fez ao Deus da sua predileção, mas todos sob uma "alcunha" comum. Um pouco como cada adepto se refere ao respetivo clube como "o Glorioso"...

Um dos momentos altos de cada sessão é a Cadeia de União. Uma vez formada, um dos irmãos profere uma curta oração, que não deve ser própria de nenhuma religião, e é, as mais das vezes, espontânea. Pode ser algo como: "Agradeçamos ao Grande Arquiteto do Universo a graça de estarmos todos aqui, juntos uma vez mais, e recordemos todos quantos já partiram para o Oriente Eterno". Dificilmente alguém poderá sentir-se posto de parte perante tal fórmula, e é precisamente o que se pretende: fomentar a união, a identificação apesar da diversidade, e o foco naquilo que, de facto, é comum a todos. Não faria sentido, apesar de a esmagadora maioria dos maçons da nossa loja ser cristã, rezar-se um "pai-nosso" na cadeia de união - até porque um dos nossos irmãos é judeu, e sentir-se-ia certamente desconfortável. E mesmo que todos fôssemos cristãos, o princípio é para manter - basta recordar que recebemos frequentemente visitas de irmãos de outras lojas, e nunca sabemos que fé professam...

Esta limitação de expressão pode tornar-se problemática para os seguidores de certas religiões que tenham por princípio o testemunho permanente perante os outros dos valores, princípios e verdades da sua religião - e, no limite, tentar converter os demais para a sua fé, expondo as fraquezas de uma crença e exaltando a outra. Quem sinta essa obrigação não poderá sentir-se bem na maçonaria, pois esta não lho permite.

Apesar de tudo o que disse ser regra apenas vigente em loja e em sessão ritual, o que acaba frequentemente por suceder é - por força do hábito por um lado, pela interiorização dos princípios pelo outro, e por último pela generalização da sua aplicação - desenvolver-se um certo comedimento nas palavras, e acabar por se evitar a utilização de expressões manifestamente próprias de uma ou outra religião, substituindo-as por outras menos passíveis de fazer o nosso interlocutor sentir-se desconfortável. Assim, não posso senão agradecer o cumprimento, e retribuir: "Que o Grande Arquiteto do Universo lhe conceda o discernimento para encontrar - e saber manter - a Luz!"

Paulo M.

P.S.: Tenho, desde que comecei a escrever aqui no blogue, vindo a escrever dois textos por semana. Afazeres diversos impedem-me de manter este ritmo, pelo que irei passar a escrever, no futuro mais próximo, apenas um texto por semana, ao fim de semana. Assim que possa passarei, de novo, a escrever mais.

15 outubro 2010

"Sim, mas o que é que fazem na cama?"


Imaginem um celibatário virgem a tentar entender o conceito de "casamento" explicado por um homem casado.
"- Ouvi dizer que as pessoas casadas fazem coisas esquisitas na cama. O que é que fazem na cama?"
"- Isso não é, de modo algum, o mais importante. De qualquer modo, as pessoas casadas não costumam falar disso a pessoas que não são casadas, e as outras pessoas casadas sabem suficientemente do que se trata para que não seja necessário discuti-lo."
"- Porquê? É segredo? Dê-me lá só um exemplo, para eu ter uma ideia."
"- O que se passa no leito conjugal é do foro da intimidade do casal, e não é para ser discutido por estranhos. De qualquer modo, o essencial é a camaradagem, que de tão intensa nos leva a pertencer um ao outro. É esse o nível de comprometimento."
"- Pois, eu tenho grandes amigos, mas não abdico da minha liberdade..."
"- A liberdade não se perde; passa-se é a decidir em conjunto, e em função um do outro. Ao ter que se conjugar as vontades aprende-se, por outro lado, a ver a realidade sob outros ângulos, e a estabelecer prioridades. Isso torna-nos pessoas melhores."
"- Não concordo nada. Não vejo a vantagem de abdicar de concretizar os meus desejos, nem vislumbro que essa mortificação me tornasse uma pessoa melhor. Quando muito, mais amarga."
"- De modo nenhum. Estar ao serviço do outro é um privilégio: é sinal de que temos valias, e que estas podem ser postas em prática. Isso dá-nos uma satisfação muito grande. Por outro lado, esta dádiva de si mesmo, praticada por ambos, leva a que ambos se tornem melhores, que cada um apreenda do outro o que este tem de mais positivo."
"- Pois, mas não percebo. Afinal, o que fazem na cama? Dão privilégios um ao outro? Praticam a camaradagem? Eu e os meus amigos também praticamos camaradagem, mas praticamos desporto juntos e passamos noitadas nos bares. Isso é que é camaradagem. Agora numa cama? Num sítio onde se dorme, pequeno e acanhado? Não percebo."
"- São coisas completamente diferentes. Os amigos podem ter muitas afinidades, mas um casal constroi essas afinidades para além das que originaram o relacionamento, e fá-lo durante toda uma vida. As amizades são mais efémeras, apesar de poderem durar mais do que muitos casamentos. Os casamentos desejam-se eternos, e moldam toda a vida dos envolvidos."
"- Uma vez mais, não vejo nada que distinga um casamento de uma boa amizade. Tenho amizades que mantenho desde miúdo, e que espero fazer durar até ao túmulo."
"- Pois, seja. No entanto, há uma sensação de bem-estar, de realização pessoal, de completude, que o casamento proporciona e que uma amizade, por mais intensa, não atinge, por se tratar de um registo completamente diferente."
"- Isso deve ser um registo mesmo muito esquisito, que eu e os meus amigos não passamos dias enfiados numa cama a cheirar a dormido, embrulhados nas almofadas, a sacrificar-nos uns pelos outros. A camaradagem pratica-se ao ar livre, no meio da natureza. Mas diga lá, que eu prometo não contar a ninguém. Afinal, o que fazem na cama?"
"-  Olhe, o que um casal faz numa cama não é nada que se possa contar. Aliás: até podia, mas para isso deixaria de cumprir com os meus deveres de decoro e discrição conjugal. Estaria a ser um mau marido. Por outro lado, de nada lhe aproveitaria: é algo que precisa de ser vivido para se entender. As palavras não são adequadas. Se lho descrevesse, acharia eventualmente a descrição repulsiva, quando na verdade se trate de algo de sublime. Poderia até afastar qualquer desejo de vir, um dia, a casar-se. Se alguma vez decidir casar-se, e o fizer de facto, verá depois a que me refiro."
"- Segredinhos e mais segredinhos! Isso são desculpas. Explique-me lá, que eu tenho um estômago de ferro, e sou capaz de aguentar o embate. Afinal, o que fazem na cama?"
"- Ó homem, já lho disse. Um casamento é algo que vai muito para além do que se faz na cama. É possível, até, ser-se casado, ter-se alguém com quem se partilha tudo, e nunca se partilhar dessa intimidade. O estar-se casado é mais um modo de vida, um estado de espírito, uma forma de estar no mundo, e a partilha na cama mera manifestação disso mesmo; no entanto, não é absolutamente essencial que essa manifestação exista. As mentes mais ortodoxas lhe dirão que para se ser casado tem, mesmo, que se fazer essa partilha. Contudo, há verdadeiros «casamentos sem aliança», em que duas pessoas vivem em comunhão de tudo - exceto de cama. Fiz-me explicar?"
"- Mais ou menos. Continuo a achar que a cama é apertada e inadequada à camaradagem de que fala, e que partilhar de um copo de cerveja se faz numa mesa de um bar com muito mais propriedade do que numa cama, onde ainda se entorna o precioso líquido no colchão. A não ser que o que fazem seja muito diferente. É? É diferente? O que é que fazem na cama?"
"..."

Lembra-vos alguma coisa?

Paulo M.