24 dezembro 2010

A distância não se mede em segundos

Porque se se medisse em segundos eu estaria a anos luz do A-Partir-Pedra.

E por que, quer queiremos quer não, para nós esta época tem um tratamento diferente, trago ao blog a imagem e as palavras que me ocorrem neste momento.

A imagem foi apanhada por mim há uma semana, as palavras são do nosso saudoso José Carlos Ary dos Santos que soube, nos poucos anos que viveu, escrever sentimentos como muito poucos alguma vez o fizeram.

Para todos o desejo de uma época de Paz, gozando a Paz mas, principalmente, fazendo a Paz.

É ela a saúde da Humanidade.



És meu irmão amigo

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençois feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençois feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher.
Ary dos Santos

JPSetúbal





23 dezembro 2010

Boas festas!


O "A-partir-pedra" deseja a todos Boas Festas,
e um ano de 2011 menos mau do que se antecipa!

Paulo M.

22 dezembro 2010

Elegia a um homem bom


Chegámos, a minha mulher e eu, ao hospital ao fim da tarde. Íamos visitar o pai de uma amiga que sabíamos estar gravemente doente. Encontrámo-lo rodeado pela família - a mulher e as duas filhas. Um olhar atento e alguns momentos chegaram-me para perceber que o seu estado não era apenas grave. A agonia começara. Não obstante, o homem doente estava lúcido. Fraco, muito fraco, mas lúcido. Não sei se consciente de que a travessia do umbral da eternidade estava próxima, mas lúcido.

Escondi o meu pensamento, proferi as palavras de conforto e encorajamento que devem ser levadas por quem visita quem está doente - esperando que às mesmas conseguisse conferir um pouco de credibilidade. Como é meu hábito (defesa?) nestas situações, procurei orientar a conversa para temas ligeiros e lançar um par de larachas que, por momentos embora, desanuviassem o ambiente. Senti-me grato por ter conseguido vislumbrar um par de sorrisos no homem doente. Pensei que, quando chegasse a altura de ser eu a fazer a mesma viagem que adivinhava que aquele homem não demoraria muito a fazer, também gostaria que alguém conseguisse fazer-me sorrir - a tal viagem é certa para todos nós, já que todos temos que a fazer, que se faça bem-disposto...

Da família que rodeava o homem, uma das filhas já se apercebera da iminência da partida. A outra guardava ainda uma réstia de esperança que a técnica médica ainda pudesse adiar o momento que a irmã já sentia chegando. A mãe de ambas, companheira de toda uma vida, incansavelmente acompanhava o seu marido, refugiando-se em pequenas coisas, não querendo pensar nem encarar o que temia sucedesse.

Uma hora depois, deixámos o homem doente. Outras solicitações de uma vida sempre atarefada nos aguardavam.

Na manhã seguinte, a notícia! O homem bom que tínhamos visitado, partira para o além desconhecido durante essa noite. A minha mulher soltou a sua emoção. Eu pensei - mas reservei para mim esse pensamento - que fora uma felicidade que a agonia tivesse sido breve. Vim a saber depois que a viagem fora feita durante o sono - e de novo dei graças por tal. A minha mulher, imersa na sua emoção, perguntava, insatisfeita, porque eram os bons que partiam quando tantos maus ficavam por aqui atormentando os seus semelhantes. Perguntei-lhe se sabia ela que se estava melhor aqui do que para onde se seguia...

Gostaríamos que os bons estivessem connosco sempre mais. Lamentamos a sua partida. Principalmente a família experimenta a orfandade da separação, o desgosto do desaparecimento. E tem de fazer o luto pela sua perda.

Quem não é crente, não tem, nestas ocasiões, arrimo para o sentimento de perda. Já quem crê em algo mais do que a materialidade que nos rodeia, sem deixar de sofrer o choque, tem a possibilidade de se consolar com a noção de que o fim deste caminho não é o fim do caminho, que, para além do que vemos e sentimos e sabemos, mais e diferente caminho existe para caminhar, não sabemos de que forma, como - mas existe.

O maçom confronta-se com a ideia do seu desaparecimento físico e aprende a não o temer, a entender que o momento inescapável é apenas uma passagem - um fim, mas também um novo princípio.

Um homem bom terminou a sua caminhada entre nós. Como todos os que gostam da companhia de quem é bom, lamento que essa companhia tenha cessado. Mas creio que a razão porque a sua presença física cessou foi apenas porque a sua missão aqui foi cumprida. Nova missão, novo desafio, nova jornada, encetou - como todos nós havemos de encetar. Foi cedo de mais? Poderia a Providência ter-lhe dado, a ele e aos seus e a todos nós um pouco mais de tempo para apreciarmos a nossa mútua companhia? É humano que o desejemos. Mas a hora foi esta porque a sua missão aqui fora ultimada, cumprida, realizada - e com êxito! Já o homem bom era, porventura, mais necessário onde seu espírito agora prossegue a sua caminhada.

Os bons vão primeiro? Pudera! É por serem bons que melhor e mais depressa cumprem a sua missão aqui!

O solstício de inverno - que hoje decorre - lembra-nos que a escuridão, o frio, a noite longa e o dia breve, o fim, afinal são um recomeço e, a partir do ponto de transição, a escuridão pouco a pouco de novo cede o lugar à luz, o frio desaparece, a noite se encurta e o dia se alonga, o fim é afinal um novo princípio.

É disto que nos devemos lembrar sempre que vemos partir um homem bom.

(Homenagem a um homem bom que partiu).

Rui Bandeira

20 dezembro 2010

A (im)perfeição e as Old Charges (I)


No Livro das Constituições de Andersen, de 1723, aprovado por maçons ilustres como Desaguliers, Cowper e Payne - reputados e reconhecidos pela sua sabedoria maçónica - podem encontrar-se estas palavras: "The men made masons must be free-born, no bastard, and of mature age, and of good report, hale and sound, not deformed, or dismembered at the time of their making" (Os homens feitos maçons devem ter nascido livres, não bastardos, de idade madura, boa fama, saudáveis e sãos, não deformados ou amputados na altura da sua admissão). Isto levanta a questão: manter-se-á esta exigência nos dias de hoje? Não há melhor forma de entender uma lei do que descobrir e entender o propósito do legislador quando se deu ao trabalho de a elaborar.

Em Junho de 1718 - fazia a Grande Loja de Inglaterra um ano - o Grão-Mestre manifestou o desejo de que os Irmãos que tivessem acesso a registos e escritos antigos sobre Maçons e Maçonaria os trouxessem à Grande Loja, para que pudessem ser constatados os antigos usos e costumes da Maçonaria Operativa. Era importante, no contexto da altura, conferir à Ordem recém criada uma certa patine, alguma daquela aura de autoridade que só a idade proporciona. Foi assim que, nesse ano, apareceram diversas cópias de documentos referente à Maçonaria Operativa - as "Gothic Constitutions". Face a estas, e não as achando adequadas, o Grão-Mestre e a Grande Loja ordenaram ao Irmão James Andersen que as coligisse e elaborasse um novo e melhor Método.

James Anderson, em 1723, com a aprovação da sua Grande Loja, publicou o resultado do seu laborioso trabalho, no que se tornou uma das obras que mais influenciou a Maçonaria até aos nossos dias: o primeiro livro de "The Constitutions of the Free-Masons". Nele incluiu uma secção chamada "the Charges of a Free-Mason" - os chamados "Antigos Deveres" - extraída de registos de lojas "para além do mar", bem como de Inglaterra, Escócia e Irlanda, para uso pelas Lojas de Londres. Foi assim que James Anderson fez uso dos antigos manuscritos a que chamou "The Old Gothic Constitutions", e que citou e parafraseou extensivamente na sua obra. É por esta razão que, num livro destinado a Maçons Especulativos, encontramos regras que só fazem sentido quando aplicadas a Maçons Operativos.

Os "Antigos Deveres" são os documentos históricos que constituem as tais "Gothic Constitutions". De um total de 119 documentos, cerca de dois terços são anteriores à primeira Grande Loja de 1717 - talvez uns 75 - e uns 55 são anteriores a 1700. Quatro foram escritos por volta de 1600, um é datado de 1583, outro de cerca de 1400 ou 1410, e outro será de cerca de 1390.

Quase todos começam com uma invocação: "Que a vontade do Pai do Céu, com a sabedoria do seu Glorioso Filho, através da graça e bondade do Espírito Santo, que são três Pessoas num só Deus, estejam connosco no nosso início, e nos dêem a graça de que governemos a nossa vida aqui de modo que possamos chegar à Sua felicidade que não tem fim. Amen."

Pode ler-se então o anúncio do propósito e do conteúdo, seguido de uma breve descrição das Sete Artes Liberais ou Ciências, uma das quais é a Geometria. Seguia-se uma extensa História Tradicional da Geometria, Maçonaria e Arquitetura, que tomava mais de metade do texto, e que se iniciava nos tempos bíblicos de Noé, terminando no ano de 930, em que o Príncipe Edwin reuniu uma assembleia de maçons na cidade de York, e estabeleceu os regulamentos usados "desde esse dia até aos dias de hoje".

A seguir vinha a forma de se fazer um juramento: "Um dos anciãos segurava o Livro, de modo que ele ou eles pudessem colocar as mãos sobre o Livro, e então as regras eram lidas." a que se seguia o aviso: "Que cada maçon tome nota destes juramentos, pois se alguma vez se vir culpado de ter violado um, que possa reconciliar-se com Deus. E especialmente tu que vais prestar juramento, toma atenção ao cumprimento destes juramentos, pois é um grande perigo para um homem quebrar um juramento feito sobre um Livro".

Seguia-se a lista das regras a cumprir, algumas de cariz comercial, outras de índole comportamental. Sem dúvida que eram essenciais a uma comunidade de artesãos que trabalhavam em grande proximidade vinte e quatro horas por dia. Por fim, vinha o juramento: "Estas ordens que ensaiámos, e outras que pertençam à Maçonaria, iremos guardar, assim Deus nos ajude, e por este Livro e para o seu poder. Amen."

Paulo M.

15 dezembro 2010

O tempo de Companheiro

O tempo de Companheiro é um tempo difícil. O obreiro já não é um Aprendiz rodeado, apoiado, apetece até dizer mimado, por todos os Mestres da Loja. Alcançado o seu aumento de salário, afinal o prémio que obtém é apenas uma mudança do seu lugar na Loja, um pouco de cor no seu avental e... uma sensação de menor apoio.

Após uma Cerimónia de Passagem que é um verdadeiro anti-clímax em relação à sua recordação do que experimentou quando foi iniciado, depara-se com um par de símbolos novos, metem-lhe uns regulamentos e um ritual e catecismo na mão e... parece que se desinteressaram dele, ele que se oriente...

Não é assim, embora pareça que seja assim. E é assim que deve ser.

A Iniciação foi o nascimento para a vida maçónica. O tempo de Aprendiz é a sua infância, em que se é guiado, educado, amparado, mimado. O tempo de Companheiro, esse, é o da adolescência. Já não se admite ser tratado como criança – como Aprendiz – pois já se cresceu – já se evoluiu – mas... sente-se a falta do apoio que se recebia em criança. Já não se quer, mas ainda afinal se tem a nostalgia do apoio do tempo de Aprendiz. O Companheiro, tal como o adolescente, sofre a sua crise de crescimento. É o preço que tem a pagar pelo seu trajeto em direção à idade adulta maçónica, em que será reconhecido como Mestre.

No entanto, só aparentemente o Companheiro é deixado só. Os Mestres permanecem atentos a ele e, de entre eles, em especial o Primeiro Vigilante, responsável pelos Companheiros. Simplesmente já não tomam a iniciativa de sugerir caminhos, orientar trabalhos, avançar explicações, dar opiniões. Porque o Companheiro já não é Aprendiz, tal como o adolescente já não é criança. O tempo é de aprendizagem por si próprio, de exploração segundo os seus interesses. E só se houver grande desorientação no caminho se deve intervir. Tal como em relação ao adolescente é contraproducente pretender-se guiá-lo, impor-lhe caminhos, pois ele ou não aceitará o que considerará indesejável intromissão ou tornar-se-á dependente de uma superproteção que muito dificultará a sua vida adulta, também os Mestres não devem abafar o Companheiro com recomendações, intromissões, solicitudes a destempo. O tempo é de o deixar explorar, ele próprio, o que tiver a explorar. Se errar, aprenderá com o erro. Mas, no final, crescerá até à responsável maturidade da Mestria. É o que se pretende.

No início é – sabemo-lo bem! – confuso. Mas afinal as ferramentas foram fornecidas ao Companheiro logo no primeiro dia, tal como o guia de trabalho lhe foi apresentado. O Companheiro só tem de perceber isso, pegar nas ferramentas e seguir o trilho que, desde o início, lhe foi mostrado. Só não foi levado, empurrado, carregado, até ao seu início. Afinal, já não é criança...

A prancha de proficiência culmina o percurso do Companheiro. Mostra que ele entendeu o que escolheu entender, que trabalhou no que optou por trabalhar. A idade adulta está ao virar da esquina. O que implica virar essa esquina já é outra história...

Rui Bandeira

12 dezembro 2010

Meus irmãos em todos os vossos graus e qualidades... ... ... disse!

Era a primeira vez que este irmão tomava a palavra em Loja. Enquanto companheiro ou aprendiz fora-lhe vedado fazê-lo. Por isso, agora, ao fim dessa longa caminhada, tendo acabado de ser exaltado ao grau de Mestre, podia, finalmente, falar!!! Eu, aprendiz recentemente iniciado, esbugalhava os olhos e tudo absorvia com sofreguidão, e talvez por isso este episódio tenha ficado indelevelmente marcado na minha memória. Assim, chegado o momento em que, numa sessão maçónica, o Venerável Mestre põe a palavra nas colunas - que é como quem diz: autoriza que os mestres peçam a palavra - o novo Mestre pediu-a da forma regulamentar, e esta foi-lhe dada. Colocando-se de pé e à ordem - como é suposto - começa a sua intervenção como quase todas começam:

"Venerável Mestre, meus Irmãos em todos os vossos graus e qualidades..."

Fez-se silêncio absoluto na Loja - como, de resto, é suposto acontecer. Todos aguardavam com curiosidade e expetativa as primeiras palavras que este irmão proferiria em sessão. Contudo, estas teimavam em não surgir. O silêncio, já denso, adensava-se a cada segundo que passava sem que fosse quebrado. Visivelmente, o Irmão debatia-se com as palavras que queria dizer. O esforço mental transparecia-lhe na face, e começava, decorridos alguns silenciosos segundos, a ficar visivelmente horrorizado com a circunstância em que ele mesmo se havia colocado. É que as palavras não saíam.

"... ... ..."

Nem um sopro se ouviu. Todos partilhavam do esforço, da atrapalhação, do embaraço do Irmão. Mas ninguém podia socorrê-lo. Uma vez dada a palavra a um Irmão, só o Venerável Mestre ou o Orador podem tomá-la antes que esse irmão indique ter terminado a sua alocução. Não fez, porém, nenhum destes qualquer diligência nesse sentido, pois todos sentiam que só ele podia - e só ele devia - quebrar o silêncio que iniciara. E assim foi. Com grande esforço, recorreu à fórmula com que, em Loja - e por vezes, fora dela - os maçons indicam ter terminado a sua intervenção:

"... Disse!"

E sentou-se.

Toda a Loja sorriu de alívio e, prazenteiramente, vários, no fim da sessão, entre abraços de cumprimentos, lhe disseram ter sido uma intervenção memorável. E foi-o de verdade - o certo é que nunca mais a esqueci. Recentemente outro episódio semelhante sucedeu - de novo com um Mestre recém-exaltado - que me fez, de novo, recordar o primeiro. Para além do evidente humor da situação, que ensinamentos se pode retirar destes episódios?

Em primeiro lugar, constatou-se que qualquer dos Mestres em questão aprendera de que forma a sua intervenção teria que ocorrer: como e quando pedir a palavra, como se colocar para falar, as fórmulas a utilizar para marcar o início e o fim da sua intervenção, e o que fazer após ter terminado; nisso ambos foram irrepreensíveis. Foi, por isso, uma lição de forma, mais do que de conteúdo, como se alguém experimentasse uma peça de roupa e se mirasse ao espelho, fazendo-a sua, imaginando-se a usá-la na rua ou numa circunstância especial, para que, chegada esta, a roupa nova o não atrapalhasse.

Em segundo lugar, a Loja comportou-se com enorme dignidade. Apesar de ser uma situação confrangedora - todos partilharam do evidente desconforto do Irmão que, engasgado, não sabia como prosseguir - todos se mantiveram impávidos, sem um sinal de impaciência, sem esboçar um sorriso. A disciplina da Loja revelou que todos tinham interiorizado o valor do silêncio, que sabiam praticá-lo, e que não era só coisa de aprendizes e companheiros; não, o silêncio e a contenção eram para todos.

Em terceiro lugar, veio-se a constatar que esse Irmão - que, da primeira vez, "entupiu" e quase nada conseguiu dizer - até tinha o que partilhar, até possuía ideias válidas, até acabou por ter algumas intervenções muito pertinentes, que se foram tornando mais sólidas e seguras de cada vez que lhe era concedida a palavra. E quem não podia, ainda, falar, teve a oportunidade de ver um outro percorrer o seu caminho, e com isso aprender que apesar de falar não ser, de início, tarefa fácil, é algo que a experiência vai ensinando.

Falar é, mais do que um direito, um dever dos Mestres. Faz parte da formação de um homem - e, consequentemente, de um maçon - saber dirigir-se a uma assembleia e transmitir por palavras o que lhe vai na alma. Poder ir aprendendo a fazê-lo face a uma assistência disciplinada, paciente e cooperante é só mais um dos pequenos privilégios que advêm do facto de se estar integrado numa Loja Maçónica.

Paulo M.

08 dezembro 2010

Quite


Um maçom deve estar sempre quite para com a sua Loja, isto é, ter cumpridas as suas obrigações para com esta. As obrigações mínimas do maçom perante a Loja respeitam ao dever de assiduidade, isto é, à comparência em todas as sessões de loja para que for convocado, e o pontual pagamento da quota mensal.

Estar quite é cumprir estes deveres SEMPRE. Sempre que um obreiro injustificadamente falte a uma sessão, viola o dever de assiduidade e, portanto, não está quite. Sempre que se inicia um mês do calendário civil sem ter pago a sua quota do mês anterior, não está quite.

Não está quite perante si próprio, perante a sua consciência. Porque, incumprindo o seu dever de assiduidade, sem justificação para tal, incumprindo, podendo fazê-lo, o seu dever de pagar a sua quota mensal, o obreiro está, antes de mais, a faltar aos compromissos que assumiu, respetivamente, de assiduidade e de comparticipação para o Tesouro da Loja. E o cumprimento dos compromissos livremente assumidos é uma questão de honra! Logo, o maçom que injustificadamente falte a uma sessão de Loja para que foi convocado, que se deixa, sem razão que o justifique, entrar em mora no cumprimento do seu dever de contribuição para as despesas da Loja, antes de tudo e cima de tudo sente-se ele próprio desonrado.

O atraso no pagamento das quotas pode ser remediado: basta pagar o que está em dívida e ficar-se-á quite. Já o incumprimento do dever de assiduidade causa sempre prejuízo. À Loja porque fica privada do contributo do maçom. E todos os contributos de todos os maçons da Loja são inestimáveis e imprescindíveis. Do Mestre mais antigo ao Aprendiz mais recente, todos e cada um são essenciais para o aperfeiçoamento de cada um e global da Loja. Mas o incumprimento do dever de assiduidade prejudica sobretudo o próprio incumpridor. E, de alguma forma, é incompreensível: pois não tomou o maçom a decisão de pedir a Iniciação para beneficiar da ajuda da Loja no seu crescimento pessoal, na sua jornada própria? E vai prejudicar a sua demanda, prescindir do contributo do grupo não comparecendo? O tempo não para, não se pode rebobinar o filme. A única forma de remediar a falta sem motivo é diligenciar pelo estrito cumprimento do dever de assiduidade. Assim se diluirá o atraso, assim se recuperará o trabalho que ficou um dia por fazer. Assim se fica, de novo, quite. Quite para com a Loja. Mas sobretudo – e principalmente! – quite perante si próprio!

O maçom tem, a todo o tempo, direito a que a sua Loja certifique que se encontra quite. Se o fizer na constância e na permanência da ligação à sua Loja, é-lhe emitida uma declaração de good standing, com a qual poderá provar, perante qualquer outra Loja que visite, ser um maçom quite, em boa posição, de pé e à ordem, perante a Loja, a Maçonaria e ele próprio. Se o fizer no âmbito do processo de desvinculação da sua Loja – que é um direito que todo o maçom a todo o tempo pode exercer -, seja por entender dever adormecer, isto é, suspender a sua atividade maçónica ou por decidir mudar de Loja, é-lhe então emitido um atestado de quite. Com esse documento, fica ultimada a sua desvinculação da Loja. O maçom pode assim pedir a sua admissão a outra Loja, comprovando perante a mesma estar quite de todas as suas obrigações perante a Loja de que se desvinculou. Ou, se simplesmente pretender suspender a sua atividade maçónica, pode, se e quando o entender, retomá-la reintegrando-se na mesma ou em outra Loja, comprovando que cumpriu os seus deveres enquanto esteve em atividade maçónica, pelo que saberá voltar a cumpri-los ao retomá-la.

Mas, no fundo, o atestado de quite é apenas uma declaração num papel. O que verdadeiramente interessa é que o maçom se sinta, ele próprio, pessoalmente, perante si mesmo, sempre quite. E é para que assim seja que a Loja existe e se disponibiliza e auxilia e coopera. Porque a razão de ser da Loja, da Obediência, da Maçonaria é, afinal, simplesmente, o maçom. Cada um deles. Cada um de nós. Livre, especial, insubstituível e... quite!

Rui Bandeira

01 dezembro 2010

O décimo nono Venerável Mestre


O décimo nono Venerável Mestre da Loja Mestre Affonso Domingues, João F., foi instalado no ofício, no segundo sábado de setembro de 2008, por um dos Vice-Grão-Mestres, na presença do Muito Respeitável Grão-Mestre, que pessoalmente dirigiu algumas partes da Cerimónia de Instalação. Augurava-se mais um bom e bonançoso ano para a Loja Mestre Affonso Domingues, sob a sua direção.

Com efeito, João F., um empresário calmo, metódico, simpático, percorrera toda a "linha de sucessão" tal como estava informalmente instituída na Loja Mestre Affonso Domingues. Depois de, já Mestre Maçom, ter assegurado ocasionalmente alguns ofícios em substituição do titular, foi eleito Tesoureiro da Loja e exerceu tal ofício um ano. Seguidamente, cumpriu outro ano no ofício de Secretário. e depois mais outro no de Orador. Cumpriu então mais dois anos de exercício de maiores responsabilidades, assegurando sucessivamente os ofícios de 2.º e 1.º Vigilante. Inegavelmente, estava bem preparado. Tinha a experiência, a competência e a vontade necessárias para ter um mandato auspicioso.

Mas, mesmo quando se julga que tudo está reunido em nosso favor, por vezes o destino trai-nos.

João F., mal foi instalado na Cadeira de Salomão, apresentou o programa do que se propunha fazer e formou a sua equipa. Sob a sua liderança, tudo estava pronto e começou a ser executado.

Depois, caiu-lhe a crise em cima da cabeça! Não qualquer crise interna, como sucedera, mais de uma década antes ao José Ruah. Caiu-lhe em cima a crise - a económica, aquela que ainda vai dificultando as nossas vidas. Empresário de um setor especialmente vulnerável, de um dia para o outro teve de se preocupar, praticamente em exclusivo, com a sua atividade profissional. As suas qualidades de liderança tiveram de ser totalmente aproveitadas na sua empresa.

Entre acorrer à gestão do seu negócio, profundamente afetado, e dedicar-se à gestão da Loja, a escolha era óbvia. Para ele e para todos nós. As prioridades existem e têm de ser respeitadas. Havia postos de trabalho a assegurar, o sustento e o conforto da sua família a defender. João F. teve de deixar para segundo plano a liderança da Loja. Não tinha nem tempo, nem cabeça, para se dispersar da sua principal preocupação.

João F. tomou a decisão que devia tomar e toda a gente compreendeu. Aliás, era a mais lógica: a Loja, essa, estabilizada como estava, podia suportar esse contratempo.

João F. e a Loja tiveram, então, que, ao contrário do que ele e ela pretendiam, entrar num regime de "serviços mínimos". Não havia disponibilidade para mais!

Poderia a Loja ter colmatado a menor disponibilidade do seu Venerável Mestre, organizando-se para prosseguir o seu normal ritmo de trabalho sem ele? Poderia. Mas não devia! A Loja segue e respeita a liderança do seu Venerável Mestre. Nas condições em que essa liderança é possível. Substituir-se a essa liderança, ultrapassá-la, seria liquidá-la. E uma Loja maçónica, não sendo apenas isso, é também uma escola de liderança e de aceitação de liderança - não da sua subversão.

O ano em que a Loja foi dirigida por João F. foi, assim, um ano de relativa acalmia, de alguma pausa, de trabalho de rotina (também necessário). E também de reflexão e de programação do que se faria seguir.

Mas não se pense que nada se fez. Fez-se porventura menos do que a nossa ambição pretendia. Mas fez-se: foi elaborado e aprovado o regulamento de funcionamento do sítio da Loja na Internet; organizou-se e realizou-se o já tradicional almoço de solstício de inverno da Loja, com leilão de objetos doados, para recolha de fundos para doação a instituição de solidariedade social; efetuou-se uma ação de doação de sangue, em colaboração com os escuteiros da Pontinha; auxiliou-se e preparou-se a criação da Loja João Gonçalves Zarco, ao Oriente do Funchal; a Loja geminou-se com a Loja Hippokrates, do Oriente de Viena, da Grande Loja da Áustria; fizeram-se iniciações, passagens e elevações; apresentaram-se pranchas.

Bem vistas as coisas, que agradável que é olhar para uma lista destas e considerar-se que só se fez trabalho de rotina, "serviços mínimos"...

Com João F., a Loja aprendeu que a liderança tranquila e aparentemente rotineira não é, afinal, de menosprezar. E deu-se conta da sua ambição. Ambição de fazer cada vez mais. Mas tomou nota que há tempos para tudo. Que as pausas são necessárias, que o refúgio na rotina é, por vezes, necessário, para retemperar forças, acorrer a outras prioridades e preparar novos voos.

E, todas as contas feitas, a Loja estava afinal melhor, mais bem preparada, mais adulta, mais experiente, no fim do mandato do João F..

João F. deu-nos a ocasião de experimentarmos que o ótimo é inimigo do bom... e que o bom, afinal, não é mau...

Rui Bandeira

28 novembro 2010

A pedra bruta



O aprendiz tivera recentemente a sua primeira lição sobre a pedra bruta e a pedra polida. Foi-lhe explicada a base, o essencial, o ponto de partida do significado desses símbolos, que depois interiorizaria e desenvolveria por si mesmo. Aprendeu, então, que a pedra é cada um de nós; que o nosso trabalho consiste em "aparar" as nossas asperezas de modo a atingirmos um estado de maior perfeição - ou de polimento - para que, por fim, juntos, formemos essa sublime construção, esse supremo templo que o Homem edifica, a partir de si mesmo, à Glória do seu Criador.

Várias noites seguidas o aprendiz adormeceu sobre o assunto, e sonhou com pedras de todos os feitios. Sonhou com enormes e antigos rochedos cobertos de um musgo ancestral; sonhou com areia fina, outrora parte de imponentes escarpas e agora reduzida a pó; sonhou com mós de moinho, com as pedras dos muros das aldeias da sua infância, com a calçada da cidade, com esquinas de prédios, com gravilha, com os seixos rolados que lançava fora quando abria um buraco no quintal e cuja forma traía um longo percurso de leito de rio e de enxurradas de Outono.

Num dos seus sonhos, o seu olhar recaiu sobre um calhau quase em bruto, semi-enterrado, com um dos lados mais plano - o mais batido pela intempérie - e o resto, por ter passado a maior parte do tempo oculto debaixo da terra, ainda cheio de rugosidades e imperfeições. Algo de familiar lhe chamara a atenção para com aquela pedra, pelo que a fixou com atenção. Logo acordou, mas aquele calhau, mais áspero de uns lados, mais liso de outro, não lhe saía da cabeça.

Só dias depois, ao fazer uma introspeção sobre as suas fraquezas e as suas forças, se reconheceu, não sem algum embaraço, na pedra com que sonhara. O seu lado mais polido - aquele, afinal, em que mais tempo investira, e que era aquele que lhe punha o pão na mesa - estava, não obstante, rachado e eivado de sulcos aqui, mas ali ainda com sinais de pouco trabalho e pouca perseverança que traíam a rugosidade original. Do resto nem valia a pena falar; precisava de tudo.

Inspirou fundo e quase desistiu; a tarefa era árdua, e não sabia sequer por onde começá-la. Apercebeu-se, então, que nem sequer sabia onde queria chegar, pelo que não fazia sentido meter-se, antes disso, ao caminho. O que deveria fazer dessa pedra que era ele mesmo?

Inquieto, procurou junto de um dos seus Mestres orientações quanto ao que deveria fazer. Este, à guisa de resposta, mostrou-lhe dois muros, igualmente sólidos e compactos: um, formado por pedras de forma paralelepipédica, cada um com as suas 6 faces laboriosamente aparadas; outro, formado por pedras irregulares mas firmemente encaixadas umas nas outras, em que apenas uma ou duas faces - as exteriores - tinham sido polidas, mas essas, oh, como brilhavam!

Mais baralhado ainda, perguntou ao Mestre que pedra deveria ser, e o que deveria fazer para o atingir. Deveria ir aparando, nas várias faces, as rugosidades maiores, esperando que, ao fim de muitas passagens, a forma se fosse compondo? Ou deveria investir numa ou duas das faces e ignorar as restantes? Ou, pelo contrário, deveria trabalhar todas, mas dando forte preponderância a uma ou duas, e limitando-se a atingir os mínimos nas remanescentes?
Respondeu-lhe o Mestre que não tinha resposta para lhe dar. Que cada um deveria aparelhar a sua pedra da forma que entendesse ser a mais perfeita, e que o Grande Arquiteto saberia usá-la, como ficasse, na construção do Templo. Umas, mais toscas, seriam usadas como enchimento, sem o qual as paredes não teriam consistência para se suster; outras, mais ornamentadas, seriam colocadas em lugar de destaque, mas seriam eventualmente mais frágeis; outras ainda, robustas e fortes, aparadas de forma milimétrica mas sem quaisquer adornos, tornar-se-iam nas pedras que susteriam os vãos e as abóbadas. Algumas pedras, pela sua própria natureza, nunca poderiam servir para certos fins; mas todas conseguiriam tornar-se úteis para alguma coisa, e tanto mais úteis quanto mais trabalho tivesse sido despendido nas mesmas.

O Aprendiz olhou então, longamente, a sua pedra, inspecionou minuciosamente a face mais polida - mas imperfeita - bem como as outras, rugosas e ásperas, e lançou-se ao trabalho.

.·.

Anos mais tarde, já o Aprendiz chegara, por sua vez, a Mestre, tendo a oportunidade de ir apreciando os trabalhos dos Aprendizes e Companheiros da sua Loja, e o quanto eram diferentes uns dos outros. Enquanto uns se esforçavam mais por distribuir o seu esforço por várias faces - obtendo belas peças geométricas que formavam um todo harmonioso, em que nenhuma face sobressaía das demais - outros persistiam em trabalhar a mesma face até que esta brilhasse como um espelho, ofuscando as imperfeições que haviam ficado por trabalhar nas restantes, e que podiam, mesmo, ser vistas como uma promessa de aperfeiçoamento futuro. Em todas elas o Mestre teve oportunidade de aprender algo de novo. E apercebeu-se, então, de que o seu  Mestre tivera razão, pois que de nenhuma poderia dizer, com segurança, que fosse melhor do que as outras.

Paulo M.

24 novembro 2010

O Orador


O Orador é o guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos em Loja, pela Loja e pelos obreiros da Loja. Integra, com o Venerável Mestre e o 1.º Vigilante, a Comissão de Justiça da Loja. É o único obreiro que pode interromper qualquer outro obreiro, incluindo o Venerável Mestre, quando se lhe afigure necessário para assegurar o cumprimento dos princípios, leis ou regulamentos maçónicos. Não admira, assim, que a medalha do Orador seja constituída por uma imagem das Tábuas da Lei.

O Orador é um ofício específico do Rito Escocês Antigo e Aceite, que não deve ser confundido, por exemplo, com o ofício de Capelão em outros ritos. Com efeito, o Orador é o oficial da Loja que tem, além da anteriormente referida, a função ritual de proferir Orações. Mas isso não quer dizer Preces... A Oração proferida por este Oficial da Loja é de outra natureza: o Orador tira, de cada debate, as suas conclusões e nisso deve consistir a Oração final (no sentido de "intervenção oral") que lhe compete produzir. Assim, compete ao Orador, no final de cada debate, resumir e organizar as várias posições que tenham sido expostas e, em função das mesmas dar o seu parecer ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar e a forma como deve ser tomada.

Recorde-se que o debate em Loja processa-se segundo regras rígidas, tendentes a possibilitar a livre expressão da opinião de cada um, sem constrangimentos nem perturbações. Importa a substância do que é transmitido, não a sua forma. Debate-se, no sentido de se analisar uma questão e tomar uma decisão; não se discute para procurar fazer valer a sua opinião, para levar de vencida opositores (pois em Loja não há opositores, apenas Irmãos que cooperam) ou rebater argumentos. Em Loja, o debate estabelece-se sempre relativamente a uma questão concreta, em relação à qual cada Mestre deve proceder à sua análise, dar a sua opinião, apresentar o seu entendimento da melhor forma de proceder. Cada Mestre intervém uma e só uma vez em cada debate. Não se interrompe ninguém (o único que pode fazê-lo, e unicamente para salvaguarda dos usos e costumes, leis e regulamentos maçónicos é precisamente o Orador - e esta situação só raramente ocorre). Cada Mestre só inicia a sua intervenção após estar terminada a intervenção anterior e depois de devidamente autorizado a fazê-lo pelo Venerável Mestre. Em caso algum se estabelece diálogo: cada Mestre fala para toda a Loja, não para uma pessoa em particular. Cada um dá a sua opinião sobre o tema, não gasta o seu latim e a paciência dos demais a refutar ou criticar outras opiniões anteriormente expressas: a assembleia é composta de homens inteligentes, que facilmente podem discernir que se A entende branco e B amarelo, B não concorda com A e tem uma opinião diversa dele - não vale a pena afirmá-lo expressamente. A mera expressão da fundamentação da sua opinião chega para mostrar a todos as concordâncias e discordâncias com intervenções anteriores. Em resumo, em Loja não se diz "não concordo com...", declara-se "o meu entendimento sobre o assunto em debate é este, por estas razões").

O Orador efetua o resumo do debate com o máximo de objetividade possível e coloca em relevo o sentir da Loja, o que resultou do debate. Ao fazer o resumo, o Orador evidencia se se verificou uma posição unânime, e em que sentido, se se manifestaram entendimentos diversos, mas um deles foi largamente maioritário, e qual, se há diversos entendimentos, sem que se tivesse destacado uma posição largamente maioritária, ou se o debate não foi conclusivo, por falta de elementos ou de opiniões consolidadas sobre a questão em análise.

Feito o resumo do debate, o Orador tira a sua conclusão, isto é, o parecer, a recomendação, que transmite ao Venerável Mestre sobre a decisão a tomar. A conclusão do debate tirada pelo Orador nada tem a ver com a posição pessoal que porventura tenha. Assinala se houve unanimidade ou, pelo menos, uma posição largamente maioritária - e, nesse caso, recomenda que o Venerável Mestre decida em conformidade com o sentido expresso pela Loja, sem necessidade de votação - ou indica as posições expressas que, não sendo evidente uma tendência largamente maioritária, devem ser colocadas à votação pela Loja. O enunciar dessas posições deve ser claro e inequívoco, para que a Loja, ao votar, saiba exatamente o que está em causa na escolha que vai fazer. Quando tal se justifique, seja por das intervenções ressaltar a falta de elementos suficientes para uma decisão devidamente fundamentada, seja por se notarem mais dúvidas do que certezas, o Orador deve recomendar o adiamento da decisão, sugerindo as diligências a efetuar para possibilitar, em devido tempo, uma decisão mais esclarecida.

Note-se que o Venerável Mestre não está obrigado a decidir em conformidade com as conclusões do Orador. Pode discordar e decidir em sentido diferente, formal ou substancialmente. É o Venerável Mestre aquele a quem a Loja delegou o exercício da autoridade. O Orador é - sempre - um colaborador, um auxiliar, do Venerável Mestre, nunca uma eminência parda que se lhe imponha. E isto mesmo até quando o Orador, no uso da sua competência de guardião da Tradição Maçónica e zelador pelo cumprimento das leis e regulamentos, porventura chame a atenção do Venerável Mestre para uma infração ou falha que se esteja em vias de cometer. Ainda assim, o poder de decisão final é do Venerável Mestre e só do Venerável Mestre. Se errar, é ele quem erra e é ele que assume a responsabilidade do erro. Ao Orador compete avisar, não pretender sobrepor uma sua inexistente autoridade à única que vigora em Loja.

No final da sessão, após ter sido concedida a palavra a bem da Ordem ou da Loja (o que, em reuniões profanas corresponde ao "período depois da Ordem do Dia"...), o Orador tira as suas conclusões sobre a reunião. Não se trata aqui de sumariar as intervenções a bem da Ordem ou da Loja, porque estas, ou são meramente informativas ou, se carecerem de deliberação, são apenas introdutórias de um debate a efetuar em sessão futura. Trata-se de sumariar o que foi feito e deliberado na sessão. Este breve sumário, para além de evidenciar o trabalho realizado, facilita a tarefa do Secretário de elaboração da ata da sessão, a ser aprovada na reunião seguinte.

É também frequente que o Orador, nas suas conclusões finais, apresente uma (breve, muito breve) Prancha Traçada sobre um tema maçónico, preferentemente relacionado com o que se tratou na sessão em causa. Porém, tal NUNCA sucede quando na sessão tiver sido apresentada uma outra Prancha Traçada por um Mestre. Em cada sessão de Loja deve haver formação dos obreiros, deve ser apresentado, em contribuição para o trabalho de aperfeiçoamento dos obreiros, um trabalho, uma exposição, um estudo - em resumo, uma Prancha Traçada. É incumbência, dever, dos Mestres da Loja garantirem-no. Se o não fizerem, estão a prejudicar a aprendizagem e a integração dos Aprendizes e Companheiros e a própria evolução pessoal dos Mestres. Mas apenas deve ser apresentada e colocada à meditação da Loja uma única Prancha Traçada de Mestre. Mais do que isso, seria estabelecer a confusão. Um tema para meditação e estudo por sessão é o necessário e o suficiente. Assim, se nessa sessão, tiver sido apresentada por um Mestre uma Prancha Traçada, a conclusão final do Irmão Orador resumir-se-á ao sumário dos trabalhos (incluindo a referência a essa Prancha Traçada, obviamente). Se tal não tiver sucedido, incumbe ao Orador, Mestre que efetua a última intervenção formal antes do encerramento dos trabalhos, garantir que a Loja não fique sem matéria para estudo e meditação, através então de uma brevíssima Prancha Traçada, em que, mais do que ensinamentos ou proposições, deve levantar pistas para reflexão. Assim, ficam os trabalhos justos e perfeitos!

Rui Bandeira


21 novembro 2010

As elites e a curva de Gauss




Ao estudar a diversidade das populações, os matemáticos descobriram um facto curioso: muitas das populações, quando ordenadas por uma das sua dimensões - como o peso, a altura, ou mesmo a distância entre os olhos - distribuíam-se de acordo com uma curva em forma de sino, como a que pode ver-se na imagem que ilustra este texto. O ponto mais alto da curva corresponde ao valor médio, e as "pontas" correspondem aos valores que mais se afastam da média. No gráfico em causa, vemos a distribuição do QI (Quociente de Inteligência) de uma população. Sendo 100 o QI médio, vemos que podemos encontrar 68,2% (34,1 + 34,1) da população - mais de dois terços - entre os 85 e os 115. Entre os 70 e os 130 encontramos já 95,4% (13,6 + 34,1 + 34,1 + 13,6), o que significa que um pouco mais de 19 em cada 20 pessoas se encontram neste intervalo. Entre os 130 e os 145 encontramos 2,2% da população - tantos quantos encontramos entre os 55 e os 70. Mas é acima dos 145 (e abaixo dos 55...) que encontramos os grupos mais reduzidos: 0,1%. Um em cada mil. Os melhores - e os piores... - são sempre raros. Fácil é ser-se mediano. A este tipo de distribuição chama-se "distribuição normal", e a sua universalidade tem uma explicação matemática. Uma vez que o saber não ocupa lugar, e o conceito até é fácil de abarcar, vamos a ele.

Tomemos um dado de jogar: um cubo, com 6 faces, em cada uma das quais está inscrito um certo número de pintas: 1, 2, 3, 4, 5 ou 6. A probabilidade de cada face ficar por cima é igual para todas as faces. Suponhamos agora que lançamos o dado uma centena de vezes. é natural que "saia" cada um dos números o mesmo número de vezes - entre 16 e 17, uma vez que 100/6 = 16,666666. Até aqui, nada de novo.

As coisas começam, porém, a tornar-se interessantes se decidirmos lançar de cada vez não um mas dois dados, e registar a soma das pontuações. Podemos obter qualquer número de 2 a 12, inclusive, num total de 11 resultados diferentes, correspondentes respetivamente de um par de "uns" a um par de "seis". A probabilidade de se obter qualquer desses números é que não é igual. Senão, vejamos: para se obter "2" tem que se obter 1 no primeiro dado e 1 no segundo dado; não há outra forma. Já para se somar 3, podemos ter 1 no primeiro dado e 2 no segundo (1+2), ou 2 no primeiro dado e 1 no segundo (2+1). Pode, do mesmo modo, somar-se 4 com 1+3, 2+2 ou 3+1. A soma "7" pode ser obtida com 1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2 ou 6+1, ou seja, de seis formas distintas! Diz-se, por isso, que a probabilidade de obtermos "7" é 6 vezes maior do que a de obtermos "2". Se somarmos o número de formas que nos permitem obter um dado número, ficamos com:

Total de "2": 1 (1+1)
Total de "3": 2 (1+2, 2+1)
Total de "4": 3 (1+3, 2+2, 3+1)
Total de "5": 4 (1+4, 2+3, 3+2, 4+1)
Total de "6": 5 (1+5,2+4, 3+3, 4+2, 5+1)
Total de "7": 6 (1+6, 2+5, 3+4, 4+3, 5+2, 6+1)
Total de "8": 5 (2+6, 3+5, 4+4, 5+3, 6+2)
Total de "9": 4 (3+6, 4+5, 5+4, 6+3)
Total de "10": 3 (4+6, 5+5, 6+4)
Total de "11": 2 (5+6, 6+5)
Total de "12"": 1 (6+6)

Se lançarmos os dados cem vezes, é natural que obtenhamos a soma "7" cerca de seis vezes mais do que a soma "2". Os valores "2" e "12" são mais raros do que quaisquer dos restantes, ocorrendo em média uma vez em cada 36, enquanto que o valor "7" ocorrerá em média 6 vezes em cada 36, que é o mesmo que dizer 1 vez em cada 6. Os valores de "5" a "9", que são menos de metade dos números possíveis, acumulam entre si 24 em cada 36 lançamentos - ou seja, dois terços, ou quase 67%.

Se repetirmos o mesmo exercício com 3 dados, depois com 4, e por aí fora, ir-nos-emos aproximando sucessivamente de uma distribuição normal. É isto mesmo o que nos diz o "Teorema do Limite Central", de acordo com o qual "a soma de muitas variáveis aleatórias independentes e com mesma distribuição de probabilidade tende à distribuição normal".

Em qualquer população heterogénea há, incontornavelmente, quem se situe no topo, como sucede com a nata do leite que, rica em gordura, flutua sobre este, e donde vem a expressão "a nata da sociedade". Do francês - em que "crème" é, precisamente, a nata do leite - nos vem, precisamente, a expressão "la crème de la crème", que significa os melhores de entre os melhores. As elites, termo usado no século XVIII para nomear produtos de qualidade excepcional, viriam a constituir, por alargamento semântico do termo, grupos sociais superiores, tais como unidades militares de primeira linha ou os elementos mais altos da nobreza.

Quem tiver lido até aqui não estranhará, agora, ouvir-me dizer que as elites não são, no fundo, senão uma inevitabilidade matemática que tem na sua origem a própria diversidade humana. Se tomarmos como premissa que cada dimensão que procurarmos medir decorre de uma multiplicidade de fatores, podemos dizer que enquanto os homens forem diferentes haverá, para cada dimensão, uns grandes e outros pequenos, uns mais acima e outros mais abaixo, uns melhores e outros piores. As elites são, tão só, aqueles que se encontram junto ao limite superior da medida cujo critério tivermos estabelecido.

Paulo M.

17 novembro 2010

Diversidade


A Maçonaria é, por vezes, vista do exterior como uma instituição fechada, imutável, dotada de uma grande coesão, que atua em bloco. Esta visão não é, nem de perto, nem de longe, correta. Pelo contrário, a Maçonaria é dotada de uma invulgar diversidade, agrupando sob a mesma genérica denominação, realidades distintas, práticas diversas, entendimentos díspares. Em todos os aspetos, a começar logo pelas suas origens...

A maior parte dos estudiosos da Maçonaria considera que ela tem a sua origem nas corporações medievais de construtores em pedra, de catedrais, palácios, fortificações, etc.. Mas essas agremiações medievais, embora partilhando regras e costumes similares, tinham caraterísricas muito próprias e específicas, em função da sua localização geográfica. Só para falar das Ilhas Britânicas, a organização específica das Lojas Operativas inglesas diferia das escocesas, que por sua vez, tinham sensíveis diferenças das irlandesas. Em França, não se pode falar dos antecedentes históricos da Maçonaria sem referir a Compagnonage. As agremiações de construtores da Flandres tinham usos diversos das italianas e estas das teutónicas. Por isso, quando se afirma que a Maçonaria Especulativa moderna evoluiu da Maçonaria Operativa - afirmação que, pessoalmente, considero correta -, é bom que se tenha presente que esta evolução resulta de diferentes Tradições, não inteiramente díspares, mas também não totalmente semelhantes.

Mas, ainda no campo da origem da maçonaria, há aqueles que a situam nos Templários e respetiva Tradição. E aqueles que a fazem remontar aos Antigos Mistérios egípcios e ou mitraicos.

Só no tema das origens podemos detetar assinaláveis diferenças de entendimento, que conduzem a diversas posturas e práticas. É inevitável que haja diferenças de conceção, mais visíveis ou mais subtis, entre quem considera praticar algo que evoluiu das corporações medievais e quem acredita que a sua prática descende da tradição cavaleiresca religiosa e ainda quem considera a maçonaria herdeira dos herméticos mistérios da Antiguidade.

Mas a Maçonaria também assume estilos e práticas diversas em função dos grandes espaços em que se insere. Não é a mesma coisa falar-se da Maçonaria Americana e da Maçonaria Europeia Continental. Não é de todo a mesma a realidade da Maçonaria Inglesa e da Latinoamericana. Isto para não falar da diversidade asiática e da progressiva afirmação maçónica em África.

Mesmo dentro de cada bloco geográfico - diga-se assim - as Obediências Nacionais e as práticas maçónicas em cada país mostram-nos assinaláveis diferenças e visíveis variantes, designadamente em práticas rituais. Cada país tem uma discreta evolução própria, que, ao longo do tempo, adquire uma individualidade específica, também inerente às diversidades culturais dos diversos povos. Se se assistir a uma sessão de Loja em Itália, na Alemanha, em França, num país eslavo e em Portugal, ainda que em Lojas do mesmo rito - designadamente do Rito Escocês Antigo e Aceite - facilmente reconhecemos um ambiente comum, uma base partilhada, mas também diferenças, idiossincracias, práticas próprias.

Por outro lado, não olvidemos a transversal diferença existente entre a Maçonaria Regular e a Maçonaria Liberal, aquela trabalhando à glória do Grande Arquiteto do Universo e com os seus obreiros na busca de um aprofundamento espiritual, esta efetuando os seus trabalhos à glória do Homem e do seu aperfeiçoamento moral. Ambas têm a sua específica valia e ambas são - creio-o - necessárias. Mas as respetivas buscas são diferentes. Sem serem reciprocamente opostas, prosseguem caminhos diferentes, esta tendente a melhorar o relacionamento do Homem com a Sociedade e os diferentes grupos sociais, aquela trilhando a rota de uma espiritualidade baseada na Fé no UM universal, origem e reflexo de tudo e todos. Ambas as vias são - repito - respeitáveis e valiosas. Ambas têm assinaláveis pontos de contacto entre si, partilham aqui e ali caminhos e princípios e valores comuns. Ambas têm - sobretudo - a inestimável caraterística de integrarem homens que procuram ser melhores. Mas são intrinsecamente diferentes. Para os cultores de cada uma das vias, essa é a melhor. Intrinsecamente nenhuma é melhor do que a outra. Apenas diferentes.

Por outro lado ainda, a Maçonaria pratica-se em diferentes ritos, uns mais universais ou mais difundidos, outros mais seletos ou localizados. Sem preocupações de exaustão, podemos referir uma dezena de ritos hoje em dia praticados: Emulação, York, Escocês Antigo e Aceite, Escocês Retificado, Sueco, Brasileiro, Adonhiramita, Francês ou Moderno, Memphis-Misraim, Schröder. Cada um com simbologia própria ou diferente interpretação simbólica, ou diverso encadeamento do ensinamento. Todos diferentes. No entanto, cada maçom de um destes ritos, de visita a uma Loja de qualquer dos outros, reconhece ali Maçonaria...

Mesmo na mesma região, no mesmo país, na mesma Obediência, praticando o mesmo rito, cada Loja tem uma prática subtilmente diferente das demais. Tem a marca da sua individualidade, o resultado da sua evolução própria, a levemente diferente evolução de uma mesma matriz.

E, finalmente, dentro de cada Loja, que pratica o mesmo rito, que pertence a uma mesma Obediência, no mesmo país e na mesma região do globo... cada maçom é - inevitável e felizmente! - diferente do Irmão ao seu lado. Cada maçom tem a sua pessoal busca, a sua individual interpretação, o seu diferente caráter, a sua diversa história, o seu incomparável plano. Buscam todos o mesmo - o seu aperfeiçoamento -, utilizando o mesmo método, seguindo o mesmo rito, integrando-se no mesmo grupo. Mas, porque intrínseca e gloriosamente diferentes, não prosseguem todos o mesmo caminho, à mesma velocidade e não chegarão aos mesmos lugares. Embora naveguem à vista um dos outros. Embora se auxiliem e influenciem mutuamente. Cada um é um diferente maçom, ainda que na mesma maçonaria.

Quando se fala em Maçonaria, está-se na realidade falando de todas estas diversas maçonarias. Todas - mais ou menos - diferentes. Mas todas se incluindo no mesmo universal conceito de... Maçonaria.

Rui Bandeira

14 novembro 2010

A clivagem racial e cultural e o insucesso escolar


Li esta semana um artigo sobre o insucesso escolar dos negros nos EUA. E depois outro idêntico sobre o Reino Unido. Há anos que estes estudos vêm sendo feitos e refeitos e, não obstante a adoção de variadas estratégias com o propósito de mitigar as diferenças, chega-se sempre a resultados semelhantes: certos grupos raciais de estudantes obtêm piores notas e abandonam mais a escola do que outros. Estes estudos comparam frequentemente os resultados obtidos por crianças, adolescentes  e jovens oriundos de famílias do mesmo estrato sócio-económico - leia-se: habitando a mesma zona e frequentando as mesmas escolas, com pais com salários idênticos e idênticas habilitações.

É claro que, sempre que um estudo desta índole é feito, logo clamam vozes acusando-o de racista e discriminatório. Recordo que os factos não podem sê-lo, mas apenas, e eventualmente, a interpretação dos mesmos. Contudo, será difícil fazê-lo a estudos que constatem encontrar-se acima da média os estudantes de ascendência asiática, seguidos dos descendentes de judeus e de indianos, não obstante colocarem os de ascendência africana no fim da cauda. Os factos foram estes e, tendo sido recolhidos e tratados de acordo com as melhores práticas e normas da estatística, não serão passíveis de grande discussão. Já as tentativas da sua interpretação - e, especialmente, as medidas a tomar - levantam interessantes questões.

Uma das conclusões hoje em dia mais bem fundamentadas é a de que a questão não é de modo algum racial, mas cultural, e as suas raízes podem encontrar-se bem fundo na educação que as famílias dão às suas crianças desde o berço até que ingressam no sistema escolar. As expetativas dos pais para com os seus filhos por um lado, a forma como entendem o papel da escola por outro, condicionam o apoio - ou a falta dele - que as crianças receberão do seu núcleo familiar no sentido da obtenção de melhores resultados escolares.

É assim que, em famílias de ascendência asiática - em que o respeito quase reverencial para com os mais velhos é um valor cultural muito forte, e em que o trabalho e o esforço são entendidos como parte da normalidade da vida e como um caminho para o sucesso, o que leva os pais a andar "em cima dos filhos" para os fazer estudar e fazer os trabalhos de casa - as crianças têm, em média, dos melhores resultados escolares. Por oposição, famílias em que as crianças tratem os pais com displicência, passem o tempo livre a ver televisão ou na rua com os amigos, não se esforçando por obter bons resultados - e, mesmo, chamando a isso "to act white" (diríamos nós: "armar-se em branco") - não terão as mesmas alegrias na hora de assinar o boletim das notas.

Também importante é a diferente atitude  dos pais para com a escola e para com o seu próprio papel no sucesso escolar dos filhos. Enquanto que uns delegam por completo na escola todas as tarefas atinentes ao bom aproveitamento escolar, outros vêem a escola um parceiro sobre o qual não podem colocar todo o peso da educação da criança, e outros ainda, desconfiados da eficiência do sistema escolar, complementam-no das mais diversas formas, de explicações particulares a escolas de línguas, de música, de estudo acompanhado, sei lá... Certo, certo, é que será, essencialmente, o tipo de educação familiar o principal fator determinante para o sucesso escolar das crianças.

Por fim, não se pode generalizar: cada caso é um caso, cada criança é única, cada família é diferente. Pode, mesmo assim, tentar encontrar-se padrões, e tentar encontrar as causas dos problemas. Não basta, aqui, encontrar correlações: é mesmo necessário encontrar a causalidade.

Face a estas conclusões, que medidas se pode tomar? Aqui a questão torna-se, subitamente, muito mais delidada. Será que cabe ao Estado ensinar os pais a educar os filhos? Será o estilo de educação que cada um recebeu e transmite aos descendentes parte integrante da sua cultura? E sendo-o, poderá ou deverá o Estado dar orientações precisas no sentido de que as crianças - para bem destas últimas, entenda-se - devam ser educadas desta ou daquela maneira? Contra, eventualmente, a vontade dos pais? O respeito pela cultura de cada um, pela sua auto-determinação e, por fim, pela sua liberdade, não iriam colidir com tais hipotéticas medidas?

Esta questão, apesar de melindrosa, poderia perfeitamente ser discutida numa Loja como a Mestre Affonso Domingues. A questão levantada é filosófica, antropológica e, apesar de também política, não o é de forma partidária ou inevitavelmente conducente a divisões entre posições tomadas. Traz informação que é, certamente, útil a que cada um de nós entenda melhor o mundo que o rodeia, e ajudará, certamente, a combater preconceitos retrógrados. Estou certo de que qualquer opinião formulada seria no sentido de se dar prevalência ao respeito pela liberdade individual, que não haveria qualquer comentário racista - muito pelo contrário, e que seria salientado que a tolerância só faz sentido se houver diversidade. No fim, todos manifestariam agrado com o tema tratado, e cada um sairia com uma posição forçosamente diferente de todos os demais, mas enriquecida pela exposição a ideias diferentes daquelas que possuía.

Como vêem - e ao contrário do que dizem algumas vozes - há, numa Loja Maçónica, muito mais a discutir do que a cor dos aventais ou a decoração do templo.

Paulo M.

10 novembro 2010

O quarto Grão-Mestre


O quarto Grão-Mestre da GLLP/GLRP foi Alberto Trovão do Rosário. Exerceu o ofício entre 2004 e 2007.

Antes disso, tinha sido, em 2001, com José Manuel Anes, candidato ao exercício do ofício. Então, foi este quem foi eleito terceiro Grão-Mestre. Mas a divulgação das candidaturas a que então se procedeu mostrou a elevada qualidade de ambos os candidatos e José Manuel Anes soube interpretar bem o desejo que então se formou e designou Alberto Trovão do Rosário para o exercício do ofício de Vice-Grão-Mestre.

Trovão do Rosário colaborou assim no trabalho de normalização da vida da Grande Loja levado a cabo por José Manuel Anes e recebeu uma Grande Loja pacificada, em velocidade de cruzeiro, com a normalidade restabelecida.

Preocupado em preservar o rumo readquirido, Trovão do Rosário dirigiu a Grande Loja com particular prudência. Cada passo, cada iniciativa, era analisado e reanalisado, estudado e ponderado antes de ser dado ou de ser levado a cabo, por forma a garantir-se que não fosse um passo em falso, uma iniciativa falhada ou erradamente controversa. Esta prudência não foi bem vista pelos mais impacientes, que, com algum humor, não isento de carinho e respeito, brincavam com o nome do Grão-Mestre, apelidando-o de Travão do Rosário...

Mas provavelmente o quarto Grão-Mestre tinha e teve razão: há que deixar o tempo fazer o seu trabalho, que consolidar o que anteriormente foi abalado e reparado. A impaciência é generosa, o desejo de fazer é positivo, mas há um tempo para avançar e um para consolidar o progresso alcançado. O quarto Grão-Mestre considerou que o seu tempo era de consolidação - e a evolução futura deu-lhe razão! A melhor prova disso é o percurso bonançoso que a Grande Loja tem trilhado desde então.

Alberto Trovão do Rosário, professor universitário, foi e é um homem ponderado, de estudo, de organização e exposição do saber adquirido. Foi talvez esta a linha de força que deixou marcada na organização que dirigiu. O seu tempo foi de aprofundamento do que é, para que serve, a Maçonaria, foi de organização das nossas ideias. Para fazer este trabalho, é preciso sossego. Que não deve ser confundido com inércia...

Este blogue, em devido tempo, registou o pensamento do quarto Grão-Mestre, quando publicou, entre 30 de outubro e 20 de novembro de 2006, na íntegra, mas dividido em nove excertos, o seu artigo "A Actualidade da Maçonaria", originalmente publicado no boletim da Grande Loja, "O Aprendiz". Ainda hoje vale a pena reler este artigo. Ainda hoje tem as marcas da atualidade e da qualidade.

Alberto Trovão do Rosário não foi travão. Foi pausa, foi estudo, foi prudência. Foi o que era necessário na altura. E o seu trabalho possibilitou que o seu sucessor estabelecesse o seu rumo, sem receio de que o terreno da partida estivesse em falso. O vigor dos passos que se dá também depende da consolidação do terreno em que esses passos se dão... Hoje, quando o seu sucessor deu já por terminada a sua tarefa e novo elemento tomou as rédeas da Grande Loja, podemos com justiça afirmar que o tempo de consolidação proporcionado pelo quarto Grão-Mestre foi precioso.

Eis um excerto, retirado do sítio da Grande Loja, do percurso maçónico do quarto Grão-Mestre que, na vida profana, é Licenciado pelo Instituto Nacional de Educação Física, Doutorado, com Distinção, pela Universidade Técnica de Lisboa (Faculdade de Motricidade Humana) e assegurou uma bem sucedida carreira universitária.

Percurso Maçónico

  • Ex-Obreiro da RL Bocage, Obreiro da RL Santiago, Obreiro da RL Fraternidade, Obreiro da RL Pisani Burnay.
  • Nestas RRLL desempenhou todas as funções do quadro de Loja tendo sido VM da RL Santiago por duas vezes e sido VM da RL Pisani Burnay.
  • Ex-Grande Inspector (Rito de York).
  • Assistente do MR Grão-Mestre da GLLP/GLRP. Por inerência, foi membro do Grão-Mestrado.
  • Capelão do Capítulo «Mosteiro dos Jerónimos» (Arco Real).
  • Ilustre Mestre do Conselho da «Ordem de Santiago» (Graus Crípticos).
  • Generalíssimo da Comenda «D. Henrique o Navegador», integrada na Grande Comenda dos Cavaleiros Templários de Portugal, juntamente com as Ordens da Cruz Vermelha e de Malta.
  • Grande Prelado do Conclave «Henrique de Bourgogne» da Ordem Maçónica e Militar da Cruz Vermelha de Constantino e das Ordens anexas do Santo Sepulcro e de S. João Evangelista.
  • Supremo Magnus substituto da Societas Rosacruciana in Lusitania.
  • Membro do Shrine (Europa)
  • Membro do Shrine (Internacional).
  • Representante do GC dos MC do Arizona junto do GC de MR e E de Portugal.
  • Representante do GC dos GC do RAM do Arizona junto do Supremo Grande Capítulo do Arco Real de Portugal.
  • Foi Presidente da Comissão Científica do Iº Congresso da Maçonaria Regular.
  • Foi Vice-Presidente e Presidente da Direcção da associação profana Grande Loja Legal de Portugal.
  • Criador, com outros obreiros, da colecção «Cadernos Maçónicos», na RL Santiago, em 1997. Posteriormente, a publicação desta colecção prosseguiu na RL Astrolábio.
  • Autor de dezenas de pranchas, artigos e comunicações sobre temas maçónicos.
  • Autor, com NN Fernandes, do livro «Mozart e a Flauta Mágica - Espiritualidade, Música e Maçonaria.
Rui Bandeira

07 novembro 2010

Os símbolos em Maçonaria: o ensinar e o aprender


É conhecido que a maçonaria recorre extensivamente a símbolos como forma de transmissão do conhecimento. É evidente que esses símbolos terão algum significado. O que, todavia, é menos evidente, é que não há significados universalmente aceites ou impostos para os símbolos maçónicos. O que um interpreta de um modo, outro pode interpretar de modo diverso. Assim sendo, de que serve a simbologia na maçonaria? A que aproveita essa "plasticidade" nos significados dos símbolos? E como é que se pode usar os símbolos como meios de comunicação do seu significado subjacente, se esse significado pode variar de pessoa para pessoa?

Para o entendermos, temos que recuar no tempo. Bem antes da maçonaria especulativa ter surgido - o que sucedeu, oficialmente, em 1717 - já os maçons operativos se socorriam de símbolos para se recordarem dos ensinamentos que os seus mestres lhes haviam transmitido. De facto, muitos dos trabalhadores da pedra não sabiam ler nem escrever, pelo que se socorriam de pictogramas e representações de objetos para o efeito. Os símbolos não eram propriamente secretos; o seu significado - as técnicas a que os mesmos se referiam - é que era apenas revelado a alguns. A maçonaria especulativa veio a adotar esse método de transmissão de conhecimento. Assim, hoje como outrora, os símbolos são auxiliares de memória, instrumentos de suporte ao conhecimento, verdadeiras mnemónicas- diriamos hoje: são cábulas - que nos permitem recordar, evocar e especular.

Mas se o seu significado pode ser individualizado, como é que o conhecimento passa sem se perder, sem se desvanecer, sem se espraiar numa mar de semânticas? De forma muito simples: para tudo há um início, e o método consiste, precisamente, em dar a cada um os pontos de partida, sem estabelecer qualquer ponto de chegada... Assim, a um aprendiz é, desde logo, ensinado o significado comum de vários símbolos: o esquadro, o prumo, o nível, o mosaico bicolor do chão dos templos, a pedra bruta, a pedra polida, entre outros. É das poucas ocasiões que, em maçonaria, alguma coisa é verdadeiramente ensinada, e mesmo aí os significados gerais são dados com parcimónia de explicações e de forma sucinta e concisa. A cada um é dito, então, que deverá procurar interpretar cada símbolo de forma pessoal, podendo quer aplicar o significado original, quer levá-lo até onde o deseje. E é esse o trabalho do aprendiz: estudar os símbolos, construir um significado em torno dos mesmos, e aplicá-lo a si mesmo.

E como se mantém um denominador comum? Quando um maçon se refere ao prumo, os demais sabem que se refere à retidão moral, à integridade, à verticalidade de caráter - aquilo que ouviu quando, ainda aprendiz, lhe "apresentaram" os símbolos. Contudo, mais tarde cada um irá interiorizar a seu jeito o que estas palavras significam. O que será sinal de caráter para um poderá ser duvidoso para outro; a nenhum, porém, é imposto qualquer significado universal. E porquê? Porque, se a maçonaria se destina a tornar cada homem num homem melhor, deve fazê-lo dentro do absoluto respeito pela sua liberdade. Por isso se diz que em maçonaria tudo se aprende e nada se ensina, no sentido de que cada um deve procurar os seus próprios ensinamentos sem esperar que lhos facultem. Cada um deverá poder procurar, no mais íntimo de si, o que quer fazer dos princípios que lhe são transmitidos: se quer segui-los ou ignorá-los, quais aqueles a que vai dar maior preponderância, e até onde vai levar esse ânimo de se superar. E é por tudo isto que, sendo essa luta de cada homem consigo mesmo algo de mais único do que uma impressão digital, a liberdade individual de interpretação se impõe sobre qualquer eventual tentativa de normalização do significado dos símbolos.

Paulo M.

03 novembro 2010

Vencedor e... vencedor!


Quando decorreu o processo eleitoral para a eleição do terceiro Grão-Mestre, a GLLP/GLRP estava ainda em convalescença da cisão que abalara o mandato do segundo Grão-Mestre. Esse processo eleitoral teve uma diferença substancial em relação aos anteriores: enquanto, quer Fernando Teixeira, quer Luís Nandin de Carvalho tinham sido candidatos únicos, para a eleição do terceiro Grão-Mestre apresentaram-se dois candidatos: José Manuel Anes e Alberto Trovão do Rosário.

José Manuel Anes era bem conhecido. Fora um prestimoso colaborador de Luís Nandin de Carvalho e em boa parte também a ele se devera a manutenção do reconhecimento internacional, após a cisão. Alberto Trovão do Rosário, professor universitário, obreiro de uma Loja no distrito de Setúbal, era então menos conhecido, mas era-lhe reconhecida grande capacidade, profunda estatura cívica e intelectual e era ardentemente apoiado por alguns Irmãos que suportavam a sua candidatura.

Recentemente cicatrizada de uma cisão, a GLLP/GLRP e os seus obreiros não pretendiam propiciar condições para que uma outra viesse a ocorrer. As duas candidaturas preocuparam-se assim em atuar de forma a que nenhuma fagulha ativasse indesejável braseiro. Pela primeira vez havia disputa eleitoral, importava demonstrar que esse facto integrava a normalidade da vida institucional da Obediência. Sabia-se que alguém havia de vencer e alguém haveria de perder a eleição. Isso era normal e fazia parte do processo eleitoral. Importava que a aceitação do resultado eleitoral fosse consensual e não criasse risco de perturbações - já tínhamos tido a nossa conta delas!

A divulgação das candidaturas e seus projetos - aquilo a que vulgarmente se designa por campanha eleitoral... - decorreu de forma exemplar: cada candidatura elaborou os seus documentos, que foram divulgados e distribuídos pela estrutura da GLLP /GLRP, com rigorosa imparcialidade. Ambos os candidatos se deslocaram às Lojas para se apresentarem e com os obreiros das Lojas debater os respetivos projetos. Mas essas deslocações tiveram a particularidade de terem sido feitas em conjunto. Não houve campanhas eleitorais, houve a apresentação de projetos, em sadio confronto.

Dificilmente se poderia ter tomado melhor opção! O processo eleitoral decorreu em harmonia, sem incidentes, cada um apresentando as suas ideias e assistindo à apresentação das ideias do seu opositor. Tudo decorreu com elevação, em verdadeira fraternidade.

No decorrer desse processo, verificou-se que as bases, as Lojas e seus obreiros, apreciaram a forma como ambos os candidatos divulgaram os seus propósitos. Verificaram que tinham perante si dois verdadeiros potenciais Grão-Mestres. Sabiam que só um seria eleito. Mas demonstravam o seu apreço por ambos. Consensualmente, a ideia surgiu, a sugestão foi verbalizada, o apelo foi feito, a opinião, Loja a Loja, coletivamente foi formada: um dos dois candidatos seria eleito, mas ambos eram merecedores de o ser. Então, sendo inevitável que houvesse um eleito e um não eleito, havia que proceder da forma que melhor se pudesse reconhecer esse mérito de ambos os candidatos. Loja a Loja, a mensagem que os candidatos ouviram afinava pelo mesmo diapasão: o candidato eleito Grão-Mestre deveria designar o outro candidato Vice-Grão-Mestre!

Talvez inicialmente não fosse essa a ideia dos candidatos. Mas o pulsar da Obediência era inequívoco.

E assim foi feito! Apurados os resultados da eleição, verificou-se que fora eleito para terceiro Grão-Mestre José Manuel Anes. Não se soube - está definido que não se saiba! - se a sua eleição ocorreu com grande ou pequena vantagem. Não houve elementos quantitativos a deslustrar a valia qualitativa de ambos os candidatos. E o Grão-Mestre eleito designou como Vice-Grão-Mestre o seu opositor na eleição!

Alberto Trovão do Rosário foi assim designado Vice-Grão-Mestre, com toda a legitimidade, com todo o peso institucional que a exemplar atuação de ambos os candidatos na eleição permitiram que lhe fosse conferido.

E foi assim que, de uma assentada, a GLLP/GLRP, recentemente cicatrizada a ferida da cisão, elegeu, não um, mas dois Grão-Mestres! Porque logo então se percebeu que, salvo qualquer anormalidade, não se tinha eleito apenas o terceiro Grão-Mestre: também se tinha escolhido o seu sucessor!

Rui Bandeira

01 novembro 2010

A liberdade na interpretação da simbologia maçónica


Magritte pintou, entre 1928 e 1929, um célebre quadro em que representa um cachimbo sob o qual escreveu "Ceci n'est pas une pipe." ou, em português,  "Isto não é um cachimbo". De facto, a pintura não é um cachimbo, mas a imagem de um cachimbo - e transmitir essa ideia era o intuito de Magritte. "O famoso cachimbo", viria ele a confessar, "Quanto me censuraram por causa dele! E porém, alguém poderia encher o meu cachimbo? Não, pois é só uma representação, não é verdade? Por isso, tivesse eu escrito no meu quadro «Isto é um cachimbo», estaria a mentir."

Um símbolo - do grego σύμβολον (sýmbolon) - pode ser um objeto, uma imagem, uma palavra, um som ou uma marca particular que represente algo diferente por associação, semelhança ou conceção. Deste modo, pode substituir-se um conceito complexo por um símbolo simples. O significante é evidente - constitui o símbolo em si mesmo; contudo, o seu significado pode ser obtuso, ou mesmo variável com o tempo, pois reside naquele que o descodifica, e cada um acaba por fazê-lo de forma pelo menos ligeiramente diferente dos demais. Por isto, é quase certo que, uma vez estabelecidos, os símbolos "adquiram vida própria", alterando-se o seu significado com o passar do tempo. Por exemplo, a Estrela de David é um símbolo que começando por constituir - de acordo com a tradição judaica - uma marca aposta nos escudos com que os guerreiros do rei David se protegiam, adquiriu, a partir de certa altura, um caráter místico, passando a ser gravado como amuleto ou proteção, e acabando por ser adotada como símbolo do Estado de Israel.

Não pode falar-se de simbolismo maçónico sem citar a velha definição de maçonaria: "É um sistema de moral velado por alegorias e ilustrado por símbolos". De facto, a maioria dos símbolos usados em maçonaria é evocativa dos princípios morais com que a maçonaria se identifica. O importante são os princípios; os símbolos são apenas os meios usados para que não os esqueçamos. E, uma vez que cada um recorda de forma diferente, e interioriza o princípio de forma única e pessoal - pois que único, individual e irrepetível é cada indivíduo e a sua experiência de vida - seria um exercício de futilidade tentar-se exigir que o significado dos símbolos fosse sempre o mesmo para todos. De facto, nem tal seria proveitoso.

Uma das frequentes utilizações dos símbolos é como oportunidade e meio de auto-análise - e também por isso se diz da maçonaria ser especulativa - que permita a cada um determinar as suas próprias "asperezas" no sentido de as "polir". Sendo as "rugosidades do espírito" diferentes de pessoa para pessoa - apesar da universalidade dos princípios, que podem aplicar-se a todos - cada um vê, sente e aplica o princípio a si mesmo de forma distinta da de todos os demais. Cada um pode, então, especulando, dar ao símbolo os significados que entenda, pois o símbolo é meramente instrumental - não tem nada de sagrado ou de "conspurcável" com este processo - para além de que atribuir novos significados a um símbolo não implica a perda dos significados mais convencionais, pelo que o diálogo sobre os mesmos continua a ser possível.

Dou-vos um exemplo que se passou comigo. Diz-se das lojas maçónicas serem "Lojas de S. João". Mas de qual? A resposta convencional é dizer-se que de dois: de João Batista - conhecido pela sua retidão e verticalidade, implacável consigo mesmo e com os outros, a ponto de fazer com que lhe cortassem a cabeça - e de João Evangelista - apóstolo do amor, cultor da fraternidade, e promotor da tolerância. Ambos se celebram por volta dos solstícios - João Evangelista no de Verão, João Batista no de Inverno. Isto são as premissas. Os princípios a transmitir são os que foram expostos: o da retidão e verticalidade de espírito por um lado, e o do amor fraterno pelo outro. Estes significados são mais ou menos universais na maçonaria. Há quem refira, ainda, que os raios de sol no solstício de Verão estão no seu ponto mais próximo da vertical, e no solstício de Inverno no seu ponto mais próximo da horizontal. Partindo desta pista, ávido de explorar estes símbolos e de fazer boa figura ao apresentar a respetiva prancha, o aprendiz que eu era então não se ficou por aqui; procurou especular mais ainda. Notou que João Batista - o da Verticalidade - era celebrado por entre uma Luz predominantemente horizontal, e que João Evangelista - o do amor fraterno entre pares - o era quando a Luz Solar era mais vertical. Conclusão? "Devemos ser equilibrados e equilibrantes: retos e justos quando à nossa volta todos falem de fraternidade e tolerância, e tolerantes e fraternos quando insistam na aplicação dos princípios de forma implacável."

São um significado e uma conclusão com alguma lógica? São - pelo menos, do meu ponto de vista. É um significado universalmente reconhecido? Não. E está certo? Ou está errado? Bom... para mim, parece-me certo, na medida em que foi instrumental para que aplicasse a mim mesmo os princípios referidos de forma mais eficaz. Para outros não resultará. Os símbolos são isso mesmo: instrumentos, meios, meras ferramentas coadjuvantes na prossecução de um objetivo maior. Aqui posso dizer: se da "adulteração" do significado "puro" e "convencional" do símbolo resultou  a melhor aplicação do princípio à minha vida tornando-me numa pessoa melhor, então - porque a ninguém prejudica o meu entendimento peculiar deste símbolo - o exercício foi profícuo. Se, para além disso, a alguém aproveitou para além de mim, então dou-me por muito satisfeito...

Paulo M.